Acerca da Inveja e da Gratidão – Revisitando Melanie Klein

Hoje escrevo sobre a Inveja, tomando por base de referência a Inveja enquanto o sentimento descrito segundo Melanie Klein (Viena, 30/3/1882 — Londres, 22/9/1960) e enquadrado nesse referencial teórico.
Em véspera do Dia da Mulher, deixando um carinhoso abraço para todas as mulheres, lembro uma das grandes figuras de referência da Psicanálise no feminino: Melanie Klein.

Num dos seus trabalhos,(Ver Obras Completas de Melanie Klein: Volume III Inveja e Gratidão e outros trabalhos (1946)”. Rio de Janeiro: Imago, 1991), a autora da psicanálise, sucessora de Freud, e que deu um imenso contributo para a leitura compreensiva das psicoses, tanto quanto Freud no estudo aprofundado das neuroses, descreve com precisão e clareza, com um discernimento único, o sentimento de Inveja e Gratidão, por oposição um ao outro, afirmando sempre que sendo a Inveja um sentimento primitivo e arcaico inerente a todo o ser humano, há bebés que conseguem a transformação deste sentimento, através da relação com o materno, gerando adultos saudáveis, e outros que não, gerando adultos invejosos.

Vão havendo naturalmente outros fatores que interferem com a evolução de cada sujeito, como em tudo na vida.
Este meu pensamento que partilho aqui convosco, numa breve síntese, não pretende ser um artigo técnico, claro está, mas não deixa de referir um enquadramento mais técnico, no sentido de uma visão mais clínica sobre a Inveja enquanto sentimento.
O meu pensamento surgiu no decorrer dos últimos dias, enquanto ouvia, numa conversa, alguém a falar da Inveja como um defeito, que todos, aliás, consideram enquanto tal, mas sem que quase ninguém se aperceba das suas origens reais, atribuindo-a a coisas mais superficiais do que a aspetos mais profundos e precocemente instalados no ser humano.

Ter-me apercebido disso, em silêncio, levou-me a reflectir que as pessoas falam muito da inveja, mas raramente se dão conta do sentimento precoce, arcaico e profundo que ali está presente e que está relacionado com aquilo que Freud designou por “pulsão de morte”.
Já há uns tempos havia escrito uma crónica sobre a inveja, mas dando-lhe um contexto de reparação, ou seja da forma como ela pode ser transformada em admiração.
É facto que a inveja pode dar lugar, ao longo do desenvolvimento humano, à melhoria do próprio, face a um modelo de identificação que inveja e passa a admirar, ou, mesmo não conseguindo chegar lá, a esse modelo, poderá transformar o sentimento em admiração apenas, sem alimentar o que antes era inveja.
Quando assim é: Perfeito. É uma inveja que se torna um sentimento saudável, de certa forma.
O problema reside em que muitas vezes a inveja cega, e destrói tudo à sua passagem, sem que o próprio se aperceba do que faz a si mesmo, e prejudicando gravemente o alvo da sua inveja, objeto de ódio, na verdade.
O objeto invejado é destruído por quem o inveja, ou ao nível do pensamento, ou materializando-se na prática, quando se vai destruindo o sujeito alvo de inveja.
Claro está que o invejoso jamais ganha com isso, ele é insaciável. Tem de ter sempre objetos da sua inveja.

Todos passámos por este sentimento arcaico, que de alguma forma deverá ter sido transformado. Mas nem sempre é assim.
A maioria de nós já terá certamente sido alvo de inveja, várias vezes ao longo da vida.
Por vezes essa inveja pode mesmo destruir vários aspetos da vida de quem é invejado.
O invejoso inveja quem e o que quer que seja, não precisa de ter uma razão concreta.
Claro que quanto melhor sucedido é o alvo da sua inveja, maior a raiva do invejoso.
O maior problema é que a inveja não diz respeito ao que se lhe atribui no senso comum, e apercebi-me disso na ligeireza com que se vai falando aqui e ali na inveja, atribuindo-lhe focos de origem absolutamente erróneos. Justificando por pequenos detalhes que em nada têm a ver com o sentimento obscuro por trás da inveja.
De qualquer forma, a Inveja no senso comum tem apenas duas soluções que podem ser positivas: ou igualar o objeto invejado, fazendo dele modelo, sem o destruir; ou não atingido o modelo, torná-lo tão somente alvo de admiração.
No entanto neste último caso, o resultado pode ser perverso, como nos dizem tantos casos com desfecho dramático de fãs por exemplo, face aos seus ídolos. Também temos, claro, o que atualmente em linguagem corrente se chamam de “haters” – em que sucessivamente vão seguindo alguém, figura pública ou não, e depreciando tudo o que essa figura faz ou produz…

As bandas de música mais famosas do mundo têm, a par de um grupo de fãs, os chamados “haters”, felizmente em minoria.
Passando à frente, ao perceber que a dimensão da inveja no senso comum lhe retira muito do peso que ela na verdade possui, para o invejoso e para o invejado, achei que fazia sentido clarificar alguns pontos nesta matéria.
A inveja é verdadeiramente um dos mais destrutivos sentimentos que existe, destruidor para quem sente, tal como para quem é alvo da sua inveja.
Muito presente nas linhas do desenvolvimento precoce dos humanos, quando o bebé inveja o materno e aprende também a ver nele o seu modelo mais primitivo, que o ajuda no desenvolvimento mais precoce, isto prende-se no entanto com questões tão profundas como as pulsões mais arcaicas que possuímos.
Relaciona-se com vida e morte, essencialmente, a base do desenvolvimento afetivo humano, onde estão presentes por um lado as pulsões libidinais mais precoces relativas ao que podemos designar como a pulsão ligada à vida, e por outro lado, a Pulsão de morte, destrutiva e de intensidade muito forte.
É aliás nesta linha de pensamento Kleiniano, que se faz ainda uma leitura compreensiva das psicoses – Posição Esquizo-paranóide verus Posição Depressiva – que não sendo uma única via de conhecimento para a leitura compreensiva das mesmas, continua a ser um modelo compreensivo que enquadra bem estas estruturas e lhes confere significado.

Clinicamente a inveja tem origem no ódio, que é algo que a maioria das pessoas não relaciona diretamente à inveja, pelo menos no que se refere à sua origem.
Pelo que me apercebi, em conversas várias, que me trouxeram a esta breve reflexão e partilha convosco, as pessoas muitas vezes pensam o inverso: a inveja gera o ódio.
Mas é exatamente o ódio primitivo que gera a inveja, do ponto de vista clínico, e que depois consegue “virar” o ódio do próprio por si mesmo, para um outro – o objeto invejado.
De certa forma o que sucede é isto:
O ódio tem como consequência o distanciamento do sujeito invejoso em relação a si mesmo, ao seu Self.
Este distanciamento é de tal forma grave que levaria ao vazio de si, aniquilação do Self, não fosse o mesmo “salvo” pela inveja.
Ela origina-se então nesse ódio e vai ser a medida que compensa o esvaziamento do Eu.
Ela tem por “missão” remover o sofrimento terrível que o invejoso sente, o ódio que está voltado contra ele mesmo, na sua origem.
A inveja vira esse ódio agonizante do próprio por si mesmo, contra o objeto invejado da sua eleição.
Com isto remove o sofrimento permanente e fatal em que o invejoso se encontra na verdade.
As insuficiências, sejam quais forem, do invejoso, são portanto suportáveis apenas e tão somente pela inveja produzida pelo ódio original.
De certa forma o “pecado original” é mesmo o ódio, a base do mal em si mesmo, sendo a inveja apenas uma consequência. Mas a matriz é a pulsão de morte, o ódio do sujeito por si próprio.

O ódio que o sujeito tem por si próprio, ligado à pulsão de morte, é substituído pelo ódio que o invejoso passa a ter pelo alvo invejado, com uma carga muito forte, muito para além daquilo que se julga em senso comum.
Não é por acaso que no filme Maléna (27 de outubro de 2000, Itália, sob a direção de Giuseppe Tornatore, e da autoria de Luciano Vincenzoni), as puritanas e invejosas mulheres sicilianas irão espezinhar e violentar com fúria, a linda protagonista que durante o filme teria sido vítima de um assédio insuportável por parte dos homens, após a morte do seu marido, e cuja conduta passou a ser conforme as circunstâncias a foram moldando, cedendo e passando a usar esse assédio em seu favor durante algum tempo. No entanto o que aqui se julga não é a conduta da bela Maléna, mas a das mulheres da localidade, traídas de todas as formas pelos olhares, gestos ou ação dos seus maridos, ao longo dos anos em que o enredo decorre, julgando sempre Maléna, por ser bela e assediada por eles, e nunca julgando os próprios maridos por exemplo. Porquê? Porque na base está o referido ódio pelas suas próprias insuficiências reativadas pela situação em si mesma. Longe de poderem vir a ser tão belas e desejadas como Maléna, a inveja salva-as do ódio que sentem por si mesmas, revertendo o mesmo para um ódio letal sobre o objeto invejado: Maléna.
Sob o disfarce da pseudo moral, é a inveja que leva estas mulheres a agredir violentamente Maléna, quando têm finalmente oportunidade. Juntas, num ato que me impressionou imenso, agridem verbal e fisicamente Maléna na praça pública, quase no final do filme, fazendo justiça ao impulso primitivo de destruição que trazem dentro de si, e que dirigem ao alvo da sua inveja absolutamente devastadora.
A Inveja é o sentimento que as move – o ódio pelo objeto invejado, que mais não é do que o ódio por si mesmas, nas suas insuficiências insuportáveis como pessoas, e como mulheres, mas com base num sentimento muito mais arcaico ou primitivo – o ódio auto destrutivo ligado à pulsão de morte.

A base do processo nunca é o pseudo-valor que lhe está associado, é sim a inveja primitiva, o ódio que esvazia estas mulheres de si mesmas e que, por conta da inveja, é voltado no sentido do objeto alvo, no filme: Maléna.
A mesma carga original da pulsão de morte, o ódio que gerou a inveja, vai assim ser direcionada para destruir o objeto invejado, porque não conseguem igualar-se a ele (não pode ser modelo a seguir, porque nos padrões de beleza jamais aquelas mulheres a poderiam igualar, pelo que movidas do ódio por si mesmas, virado contra o objeto invejado, tentam literalmente eliminá-lo).
Este filme foi aliás alvo de um programa muito interessante, na época, em Portugal, na RTP 2, cujo nome não me recordo, onde um dos temas abordados foi precisamente a análise deste filme e da Inveja que ali se torna evidente. O tema foi analisado por um psiquiatra e psicoterapeuta bastante conceituado,que me apraz dizer que tive como professor na faculdade, onde claramente se aborda a questão da inveja que, não conseguindo igualar o alvo de inveja, o tentará aniquilar e destruir.
Este filme ganhou também o Óscar de melhor fotografia. Maléna é vestida pela bela e conceituada atriz Monica Belluci, num papel que achei de excelente representação.

Retomando o tema em si mesmo, numa versão Kleiniana, é verdade que é aquilo que se designa por sensorialidade do ódio, que é dirigido ao que evoca as incapacidades e insuficiências do próprio invejoso, com a finalidade de eliminar a fonte do seu sofrimento.
Assim, a sensorialidade tem por missão a manutenção de algo que valide o próprio Self, que confira validade e bondade ao invejoso, porque não é capaz de a sentir de outra forma.
A base do pensamento e da concepção de Klein acerca da Inveja mantém-se portanto intacta, sob esta perspetiva que aqui é retratada. Continua tão verdadeira como nos anos em que Klein desenvolveu os seus trabalhos.
Seria positivo que quem sente inveja profunda por alguém conseguisse identificar isso em si e pedir ajuda especializada.
Talvez numa análise prolongada no tempo fosse possível aceder ao núcleo mais profundo do sujeito e reparar de alguma forma o sofrimento, o ódio primitivo, a inveja precoce. Talvez…
No entanto, a inveja permite precisamente ao sujeito invejoso não pedir ajuda, não perceber que tem um problema, “tapar” o sofrimento que tem em si mesmo, como já se referiu.
Ao invés, vai conseguindo sentir-se bem consigo mesmo à custa do ódio que virou contra o alvo da sua inveja. Se puder mina tudo à volta do alvo da sua inveja, tudo o que esteja ao seu alcance. Destrói tudo o que possa.
Muitas vezes as pessoas são confrontadas num repente com o facto de se aperceberem de que são alvos de inveja.
As mais atentas vão perceber o ódio letal que o invejoso tem de si, como se reveste sob várias capas. Continua a estar na sua essência a pulsão de morte, o ódio destrutivo que através da inveja é virado para o alvo.
De acordo com a autora, e bem a meu ver, a inveja é um sentimento terrível de ódio e raiva relativamente a tudo o que outra pessoa tem ou de que desfruta, tendo o invejoso o impulso destrutivo de arruinar, de tirar ou de estragar aquilo que inveja no outro.
O invejoso sofre muito quando vê o outro, alvo da sua inveja, ter o que o invejoso quer para si, seja o que for, material, físico, psicológico, afetivo, o que for.

Apazigua a sua raiva e inveja apenas quando tudo fica destruído. Fica apaziguado com a infelicidade alheia, mas nunca fica saciado…Qualquer tentativa de o satisfazer não dá frutos…
Porquê?…
Porque a Inveja é um sentimento arcaico por oposição à gratidão, numa linguagem Kleiniana – podemos muito simplesmente dizer que os estudos de Klein diferenciam aliás, e bem, o bebé grato (aquele que teve uma mãe considerada suficientemente boa, em linguagem técnica, e onde houve a necessária transformação devolvida depois ao bebé) e o bebé invejoso (aquele onde isto não foi possível). Gera-se assim o adulto grato ou, pelo contrário, o adulto invejoso.
As primeiras fases do desenvolvimento são muito marcantes de facto para todos nós, e é lá que está a fundação da nossa estrutura.
O invejoso necessita de se sentir válido, tem na sua base insuficiências e lacunas, feridas profundas e precoces ao seu narcisismo, um ódio por si mesmo que o levaria possivelmente à auto destruição, ao esvaziamento de si.
A sobrevivência do Self fica portanto dependente da Inveja, a única forma que encontra para
eliminar na fonte o sofrimento do invejoso, o ódio que nutre por si mesmo, na verdade.
O problema é que devido a isso, o objeto invejado pode ser gravemente prejudicado, como se viu.
Não adianta alguém tirar tudo de si e dar ao invejoso. Ele não sacia a sua inveja por isso.
E arranjará sempre forma de continuar a invejar. O ódio é demasiado profundo.
Por isso é tão importante o Amor. O Amor por si mesmo antes de mais, pois sem ele não se desenvolve Amor pelo Outro…
Muitos dizem que toda a psicopatologia advém da falta de Amor, sobretudo do mesmo por si próprio… Provavelmente há uma parte de grande verdade nesta afirmação.
E tal como a Inveja pode ser uma das expressões mais evidentes do ódio primitivo por si mesmo, também a gratidão, o seu sentimento oposto, é uma expressão da capacidade de amar.
A inveja e a gratidão, são aquilo que se poderia designar por um defeito e uma virtude, sua oposta. Tal como o ódio por oposição ao amor.
Criticada por alguns na sua época, aplaudida por muitos, Klein fez um brilhante trabalho, a meu ver, em psicanálise, que continua intacto no seu conteúdo até aos nossos dias.
Permitiu-nos olhar a inveja e a gratidão na sua verdadeira essência, e perceber o quanto é sinal de perturbação a inveja, e o seu potencial destrutivo, tal como perceber o como é um sinal de saúde e capacidade de amar, o sentimento de gratidão.

Como dizia Melanie Klein: “O sentimento de gratidão é umas das expressões mais evidentes da capacidade de amar”.
Concordo em absoluto.