Ana Faria e os Queijinhos Frescos

Confesso que sou um apaixonado pelo passado (não é por acaso que a minha disciplina favorita sempre foi história).Ana Faria e os Queijinhos Frescos Mas dentro do passado, as décadas de 70, 80 e 90 provocam em mim um especial fascínio. Seja na televisão, na música ou na literatura tudo o que diz respeito a estas três décadas é absolutamente fantástico (caminhando sempre no limbo entre a genialidade e a bizarria extrema). Hoje trago-vos um pedaço da história musical deste nosso país. Não tenho idade para me lembrar desta senhora, mas sei o quão épica ela foi. Ana Faria foi a maior do seu tempo. Infelizmente a história esqueceu-a. Até hoje. Até esta crónica. Esta semana no “Desnecessariamente Complicado” proponho a todos que recordemos e analisemos a vida e obra de Ana Faria e os Queijinhos Frescos!

Para todos aqueles que, como eu, são filhos dos anos 90 e que não possuem qualquer memória de Ana Faria e os Queijinhos Frescos o conceito explica-se em poucas palavras: as músicas são êxitos internacionais reconhecidos por todos nós enquanto as letras são portuguesas e, regra geral, nada têm a ver com as originais. Estão por isso reunidas as condições para material do qual são feitas as lendas! Duvidam? Então leiam esta crónica e rendam-se ao talento desta banda, e em especial, à sua mentora!

O conceito era tão simples quanto eficaz. Músicas estrangeiras com letras portuguesas sempre com crianças a cantar em vez de adultos (sabem quem também usou este conceito? Não? Então pesquisem sobre a origem das músicas do Marco Paulo ou dos Onda Choc, por exemplo).

brincando_aos_classicos_ana_fariaEm 1982 “Brincando aos Clássicos” foi a pedrada no charco que deu fama e projecção a Ana Faria. Imaginem Mozart, Chopin, Beethoven ou mesmo Verdi a tocar em pano de fundo enquanto uma voz infantil canta em português. Um álbum assim só podia dar nas vistas. Aqui, cada música tinha um nome, sendo “Luís” aquele que ainda hoje povoa as mentes de quem cresceu nesta década. “O luís, o Luís, quer ir a Paris” é, muito provavelmente, um dos refrões mais recordados por uma certa geração (https://www.youtube.com/watch?v=KhWL5CDnDLs). E não é por acaso. Porque se em muitos casos a letra não parece criar qualquer ligação com a música, neste exemplo específico aconteceu magia.

Em 1983 voltou a acontecer magia, quando foi editado “Brincando aos Clássicos – Vol. 2”. Ou seja, foi a evolução na continuidade. Mas se o primeiro volume tinha centrado a sua atenção na música clássica agora era tempo de deitar o olhar à música pop. E deste álbum apresento-vos aquelas que eu considero as duas melhores faixas.

A primeira dá pelo nome de “À meia-noite” e pega naquela que é a minha música e videoclip preferidos de sempre: “Thriller” de Michael Jackson.

Mais do que a voz fininha, salta à atenção a letra. “Pedi à mãe que me deixasse ver na televisão/O filme de terror que às vezes dá na Última Sessão”. Ora mais 80’s que isto era impossível! “Vai para a cama, lava bem os dentes, toma o fluor e faz chichi.” Ora já não era sem tempo de em Portugal termos uma música com uma referência ao fluor e ao chichi! Isto sim são conteúdos de qualidade! “Á meia-noite/ noite escura/ vou ver televisão pelo buraco da fechadura”. Aqui temos um clássico da infância: espreitar pela fechadura. Claro que nunca víamos nada, mas a curiosidade era mais forte do que nós. O curioso aqui é que o protagonista da história conseguiu mesmo ver o filme pelo buraco da fechadura. É caso para dizer “mas que grandes fechaduras tinham eles nos anos 80”. Para os mais curiosos aqui fica esta magnifica música: https://www.youtube.com/watch?v=hRhMqDJZD9E

A segunda música a merecer o destaque dá pelo nome de “Onde tás ó Zéi?” e é uma versão bem-humorada e cheia de sotaque alentejano de “Shaddap You Face” de Joe Dolce. Todos nós reconhecemos que o sotaque alentejano é castiço e tem a sua piada. Agora imaginem quando cantado por uma criança de voz doce!

Analisemos então a letra. “E a professora diz-me assim/Onde tás ó Zei? Vem estudar pra aqui/ Tou no balancé, a lição já li”. Só pelo facto de conter a expressão “balancé” esta música já é histórica. Isto porque a minha geração já não disse “balancé”, ou seja é algo que contém em si mesmo todos os anos 80. “Eu nasci no monte/tostadinho por o sol/Gosto de açorda e de jogar ao arreol”. Pergunta que se impõe: caros leitores que viveram esta década algum de vocês me pode explicar o que é “jogar ao arreol”? Não conheço esta criança mas só pelo facto de partilharmos o amor à açorda já somos amigos. E depois de ouvirem esta versão, ou de a recordarem para os leitores que cresceram nesta década, também vão partilhar da minha opinião: https://www.youtube.com/watch?v=hWEFN1ViQ1Q .

ana_fariaEsta é, na minha opinião, a versão mais bem conseguida de Ana Faria. Tem tudo: o sotaque alentejano pela voz de uma criança; humor e seriedade nas doses certas; uma letra com a sua quota-parte de crítica social e uma letra viciante que permanece na nossa mente durante largas horas. Isto sim é música de qualidade para o público infantil. Pena é que nos dias de hoje não exista algo deste género!

Nota final para as edições de “Batem Corações” (1985) e “O Melhor dos Queijinhos Frescos” (1986), assim como os livros da autoria de Ana Faria que foram sendo publicados ao longo dos anos.

Claro que poderíamos dedicar o nosso tempo a analisar as letras de todas as restantes canções de Ana Faria, apenas não o fazemos por falta de tempo, obviamente. Contudo deixo um desafio aos leitores: naveguem pelo Youtube e pesquisem por estas e outras músicas de Ana Faria. Certamente serão surpreendidos pela mestria e genialidade das letras e pelas escolhas das músicas para adaptar.

Mas agora perguntam vocês: “O que é feito de Ana Faria?”. Pois, digamos que ela preferiu afastar-se da vida pública. Actualmente dedica-se à pintura, algo a que já se dedicava antes de ter apostado na área musical. Os Queijinhos Frescos estarão, certamente, muito mais velhos (pela lógica serão já pais de filhos e, em alguns casos, até avós de netos), mas seria curioso ver onde estão hoje em dia e no que se tornou a sua vida profissional.

Este projecto não envelheceu da melhor forma (nenhuma criança ouviria algo assim actualmente, por exemplo). Contudo são músicas e letras que encerram em si mesmas uma parte da cultura portuguesa da década de 80 e 90.

Ana Faria pode estar condenada a permanecer para sempre nos discos de vinil e numa parte obscura do youtube, contudo nunca perderá o seu recanto nos nossos corações. E se tem um recanto no meu coração e eu nem sequer cresci a ouvi-la, imagino o que dirá o leitor que a acompanhou durante a sua infância/adolescência!

Seja actual ou de um passado distante o importante é ouvir música, de preferência nacional. Porque em Portugal também se escrevem boas letras e também se compõem boas músicas. É preciso é procurar, porque o talento existe em grande quantidade!

Boa semana.
Boas leituras.