A análise que faltava à vitória do Syrisa

Pus logo o dedo no ar e respondi que “sim”, quando, na sala de aulas, a professora perguntou com ar curioso se já tínhamos ouvido falar na Grécia.

Podem crer que sim, que já ouvi falar muito nesse país de sábios. Podem perguntar ao meu pai se é verdade, pois ele é um homem que nunca mente e até para ser coerente com os ventos da mudança, passou a ir trabalhar sem gravata a partir do dia em que as eleições legislativas naquele país deram a vitória ao Syrisa, um Partido de extrema-esquerda cujos líderes, de certeza que se têm imaginação suficiente para ver na gravata um símbolo da subserviência ao capitalismo, mais depressa devem já ter descoberto uma fórmula mágica que lhes permita arrebatar o país à grave crise económico-financeira em que os famosos mercados dizem que ele está mergulhado. Mas já lá vamos, à Grécia e ao Syrisa, bem como às implicações da vitória daquela força política, naquele país da Europa oriental.

Convém, antes, dizer que a minha professora do quarto ano é uma venerável senhora, ainda réplica das antigas mestras do Ensino Primário que exerciam o magistério com autoridade, valendo-se de medidas punitivas para castigar os alunos que lhe desobedeciam. Uma das que pior fama lhes dava era dar palmatoadas para os erros que, não sendo de palmatória, eram tratados da mesma forma.

A nossa tinha na gaveta uma régua de trinta centímetros para, de vez em quando com ela, eu e os meus colegas medirmos as consequências de nos comportamos mal nas aulas. Em certas ocasiões, para conter a desordem que considerava haver na sala, com a palma da mão esticada, dava uma pancada vigorosa no tampo da secretária que se ouvia na rua e se a mãe de alguma criança se lhe queixava dizendo que o filho não dormia à noite por causa do zumbido que ressoava nos ouvidos, no dia seguinte, o resultado era a aplicação de um castigo que podia ir de nos obrigar a escrever no caderno dez vezes todas as tabuadas, até ficarmos uma semana sem irmos ao recreio e, no intervalo, ficarmos da janela a ver o tempo passar lá fora, ainda mais lentamente do que se ela nos estivesse a dar um relambório de matéria.

Da primeira vez em que tinha falado de países, levara para a aula um mapa-múndi que pendurou, com a ajuda de uma auxiliar, a toda a largura do quadro onde, quando escrevíamos, ficávamos com os dedos cobertos de giz. Ficámos muito admirados a olhar para ele, como se fosse uma janela recém-aberta sobre o mundo e concluímos que tirando ela, ninguém ali presente fazia a menor ideia, até àquele momento, de que o planeta fosse tão grande, nem que a tantas manchinhas de todas as cores ali representadas, equivalessem outros tantos países, os quais, afinal, muito mais do que pelo tamanho, diferiam uns dos outros por estarem pintados de uma cor que melhor os protegesse do reflexo do sol e permitisse ver pelos alunos que estavam sentados longe na última fila.

Explicou-nos que aquelas maiores regiões de terra cercadas de água eram os continentes, os quais eram em menor número do que os oceanos que, por seu lado, eram ainda menos do que os mares, rios e riachos que nem sequer vinham ali representados. Tomei consciência da minha pequenez, enquanto ao pensar nas dificuldades que tinha para assimilar tanta matéria, temia nunca vir a saber mais do que uma ínfima parte do conhecimento do meu pai, que não logrou concluir a quarta classe, o que constituía um motivo para de noite, deitado na cama às escuras, envergonhado tapar a cara com o lençol e começar a chorar.

Como quase todos tínhamos dificuldade em fixar a posição dos países no mapa, ela decidiu pegar num lápis e fazer uma espécie de um círculo oval, que englobava apenas aqueles onde já tinha ido de férias e assim, para meu espanto, via-a traçar os contornos do que seria um novo continente, que reunia países tão díspares como a Espanha, França, Alemanha, Cuba e Cabo Verde, isto é, nações de três dos que compunham o anterior mapa, o qual acabava de ficar parecido com as imagens que eu a caneta costumava riscar no meu livro de leitura.

Não ando longe da verdade, se disser que a atitude dela deve ter causado na cabeça da maioria dos meus colegas, um alvoroço maior do que se a lista dos países eleitos por si incluísse Marrocos e, naquele instante, passasse uma típica tempestade de areia do deserto, das que enchem de areia as mucosas dos viajantes que são apanhados desprevenidos a meio de uma viagem. Alguns, começaram-se a rir e outros, aproveitando o facto de a professora estar de costas voltadas, começaram a fazer bolinhas de papel que arremessaram uns contra os outros como se fossem forças beligerantes que, reconhecendo naquele território imenso potencial, lutassem afincadamente pela respetiva posse.

Acredito convictamente que seja com a finalidade de fugir a estas tempestades, que, de todas as pessoas que eu conheço, nenhuma, de passagem para a Tunísia ou para o Egipto, onde as praias são de areia mais fina e água mais quente, viaja a não ser de avião, pois só sobrevoando o espaço do deserto a grande altitude, não existe a mais remota possibilidade de chegar um grãozinho de areia que possa incomodá-las. Ainda recentemente, eu e os meus pais presenciámos uma e das feias!

Íamos de carro a caminho da Nazaré, onde alugámos uma casa térrea nas traseiras da frente de praia para passarmos a primeira quinzena de abril, quando demos por nós a presenciar um mini-tufão que ia arrancando alguns telhados e era naturalmente mais frequente nessa altura do ano do que no auge dos meses de Verão, em agosto, que era quando não nos podíamos deslocar lá, a não ser de passagem, porque não só a alimentação mas também os alugueres eram bastante mais caros. Não deixou saudades ver, quando chegámos à marginal, algumas embarcações de pesca destruídas e a praia transformada num estaleiro de obras para efetuar as reparações dos cascos e mastros derrubados pela força do vento, o que nos impediu de frequentá-la livremente durante todo o tempo em que lá estivemos. Exaurida com a falta de sol e de descanso, porque às primeiras horas começavam os pescadores, que não podiam ir para o mar, a deslocar-se para o areal onde se punham a bater com martelos, a minha mãe quis voltar para casa. No regresso, a viagem tinha acabado em beleza, não fosse o meu pai ter escolhido para acelerar o carro que pedira emprestado ao patrão, uma estrada em péssimo estado onde, camuflada pelo arvoredo na berma, uma brigada móvel da G.N.R. acabara de montar um radar para medir a velocidade e punir os condutores intrépidos que circulavam nesse sentido em depressa demais. Por causa do sucedido, o amuo da minha mãe durou uns dias, mas logo depois, sem vontade de passar o resto das férias em casa, ela tinha novamente vontade de sair, lamentando que não tivesse sobrado sequer dinheiro para irmos um fim-de-semana a Badajoz, onde só pior do que ele ter dois dias e passar tão depressa, seria o facto de lá chegarmos e novamente nos depararmos, como na Nazaré, com a falta de sol.

Há dias, depois das eleições que aconteceram na Grécia, onde venceu o Syrisa, comecei a ouvir o meu pai a falar constantemente de política, vendo-o andar às voltas pela casa queixando-se de que eramos mais pobres do que os gregos e muito menos instruídos do que eles, mas só dos que haviam votado no Syrisa, pois tinham dado ao mundo uma lição de democracia nesse recente sufrágio. Não percebi o que ele quis dizer com aquela afirmação, no entanto, concordei com ele em grau, mas não em género, nem em número. É que podia ser grave, em Portugal, os eleitores continuarem a preferir os Partidos que optam pelas medidas de austeridade para reduzir o défice, mas é mentira que a culpa seja toda das mulheres e, muito menos que o nosso país seja singular nesse aspeto, ao ponto de este fenómeno de massas não se repetir também nos outros.

À procura de uma explicação que ele não pôde dar, fui à Internet pesquisar sobre a tradição política na Grécia e lá vinha que, há muitas gerações, num período chamado de Antiguidade Clássica, tinha lá funcionado o berço da civilização. Quanto ao líder do Syrisa, que estava agora à frente do Governo, um tal de Tsipras, cujo nome o meu pai copiara para rebatizar um papagaio que tínhamos na varanda, só dizia que era engenheiro e, sendo militante de esquerda desde a juventude, um político que, a meu ver, podia ganhar vantagem sobre os demais, não estando identificado com os candidatos tradicionais, que quando não estão nas esferas do poder, gravitavam à sua volta como se fossem atraídos pelo magnetismo, tal e qual os astros insignificantes na orla dos planetas.

Vi-o na televisão, no comício de encerramento do Syrisa e, fosse ou não por estar a precisar de trocar o meu aparelho por um moderno LCD de trinta e duas polegadas, achei-o fatigado. Tinha um ar cansado, a modos de estar entre o de um futebolista que, exausto por correr atrás da bola, pede para ser substituído a meio da segunda parte e o de um adepto desse clube que, farto de vê-lo jogar tão mal, está cansado de acreditar que ele possa melhorar e equaciona seriamente mudar-se para o rival.

De aspeto frágil, pareceu-me sem estaleca para aguentar o que aí vem. De ar marcadamente latino, não se parece nada com o homem de quem se diz estar na calha para suceder ao herói Ulisses e ajudar a Grécia a vencer mais uma dura batalha. Esse, toda a gente sabe que, para ser bem-sucedido mas conversações com os ministros dos outros países da zona euro, deve ser oriundo de um país do norte da Europa, para nenhum credor pensar que, seja qual for a solução por ele escolhida, os seus superiores interesses não estão desde logo acautelados.

Mas isto é eu a pensar. No conceito do meu pai, ele ocupa o lugar cimeiro do pódio e para a minha mãe tanto faz. Tanto faz, desde que, à sua maneira, o tal senhor que é líder do Syrisa, com o auxílio do seu mediático ministro das finanças, contribua para desimpedir o céu das nuvens negras que pairam sobre as nossas cabeças e faça com que o sol, para todos os europeus, de uma vez por todas volte a brilhar.