A Arnaldina. Que faz bolos. Ou magia. Nunca sei ao certo!

Às vezes é preciso coragem. Fechar os olhos. E os punhos. Respirar fundo. Fechar os olhos outra vez. E ver, no escuro, como já fomos. Como corríamos. Como ríamos. Havia Mãe. E Pai. Mas aqueles de quando éramos pequeninos. Que eram super-heróis. Que eram maiores que os outros todos juntos. Diziam-nos que Deus é que era. Que Jesus isto e aquilo. Mas não. Fé é confiar. Não no que não se vê. Não à toa. Fé tem-se pelos deuses que falam. E que nos abraçam. E que nos olham com a força toda que têm nos olhos.

E é preciso coragem para voltar ao que já se foi.

A Arnaldina é a mãe do Luís. E do Zé Henrique. É pequenina. Nunca se põe em bicos de pés. Não precisa. Fala sempre baixinho. Sorri sempre.
Faz bolos. Ou magia, nunca sei ao certo. Faz bolo-rei. E bolos de chocolate. E de noz. E de tudo. Nunca falha. Diz abracadabra e pronto. Sai um bolo que sabe a amor.

A Arnaldina é da idade da minha mãe. Tem cinquenta e cinco anos. Terá um metro e cinquenta e cinco. Ou menos. É uma mulher normal. Não vai ficar na História. Os grandes nunca ficam. Ou é raro. A História nunca escolhe os melhores.
A Arnaldina é artista. Nasceu assim. Não tem culpa. Só que é uma artista diferente. Passa bem sem palmas.  Passa bem sem ser vista. É pequenina. E não se põe em bicos de pés. Os grandes nunca se põem.

Foi para a Suécia há um ano. E fez a maior viagem do mundo. Que é aquela que fazemos ao esconderijo que temos cá dentro. Que é o melhor sítio de nós.  E o mais difícil de chegar. Na pista de aviões que tinha escondida, correu, correu, correu, abriu os braços, saltou e deixou que o vento a levasse à vida dela. A que gritava para nascer.
A Arnaldina tem cinquenta e cinco anos. E foi. Já não mora aqui. E ainda bem. Mora longe. Num sítio com mais noite que dia. Com pessoas muito altas. Com o cabelo muito loiro. Que dizem palavras estranhas. Mas o estrangeiro nunca é o sítio onde não se percebe a língua. Estrangeiro é o sítio onde já não nos lembramos quem somos.

A Arnaldina emigrou. Aos cinquenta e quatro anos. Já com riscos na testa. E semi-rectas ao lado dos olhos. E foi no frio. Num sítio com rainhas e princesas que descobriu o caminho para chegar até ela. Dobrou cabos. Remou com muita força. Fintou monstros. Passou-lhes pelo meio das pernas. E chegou. Na segunda parte da vida. Mas chegou! Na bagagem, que ia levezinha, levou o mundo. Foi de um ponto cardeal ao outro com a coragem de mil Mulheres. Não de mil Homens. De mil Mulheres!
No ponto cardeal de onde saiu, caiu a noite. E por lá ficou. Bem feito! Não há aquários para quem não cuida dos seus. Era o que faltava!
No ponto cardeal aonde chegou, levantou-se o dia. E por lá ficou.
Ninguém soube. Ninguém viu. Mas a Arnaldina fez uma Revolução. Sem armas. Sem exército. Sem poesia por trás. Sem um Zeca Afonso a gritar Vampiros. Mas fez. Quase à capella. E hoje tem um sorriso ainda mais bonito.

A Arnaldina saiu do país. Saiu de Rio Tinto. Levou feridas. Não nos joelhos. Não nos cotovelos. Levou feridas no sítio que não se vê. Que é onde dói mais. Foi com o Henrique, o marido. Sempre juntos. Na Suécia, nas chegadas, à espera deles, de cachecol e de camisola de gola-alta, com a mão entrelaçada na mão da Nina, estava o Zé Henrique, o filho mais novo. O Luís ficou por cá. Para já!

A Arnaldina continua a fazer bolos. Dos que sabem a amor. Aprendeu um bocadinho de sueco. Diz obrigado. E olá. O sorriso faz o resto. Não me lembro se tem os dentes brancos. Ou se são direitos. Ou se os tem todos. Sei que o sorriso da Arnaldina é de quem é bom. E simples. Que é a maior forma de se ser.

A Arnaldina descobriu que afinal não emigrou. Pelo contrário. Descobriu foi o caminho para casa.

Não vai ficar na História. Os grandes nunca ficam. Ou é raro. Os mesmo grandes fecham os olhos. E os punhos. Respiram fundo. E dão a volta ao guiador. De repente! E mudam aquilo que era suposto serem. E ficam melhores!

É a Arnaldina. Que vai ser avó de uma menina. Que tem um metro e cinquenta e cinco. Ou menos. É magrinha. Tem cinquenta e cinco anos. Mas chegou ao Mar do Norte. E o vento já passou.

JoãoNogueiraLogoCrónica de João Nogueira
Pés bem assentes na lua

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