Assalto à mão desarmada

Com a casa às escuras, ia descalço da cozinha em direção ao quarto quando ouvi um barulho vindo da sala que me deixou alarmado. Seria o gato? Impossível, porque deixara de tê-lo em casa no dia em levei adulto um cão de raça rottweiler que pertencia ao meu cunhado. Nesse caso, seria o cão? Impossível, porque também não o tinha desde que resolveu ir atrás do gato, que imediatamente fugira de casa com medo assim que o viu.

O som de passos e objetos a serem retirados do lugar, aguçou-me a curiosidade à passagem pelo corredor e com o à-vontade de quem circula sem constrangimentos na casa em que mora, resolvi empurrar a porta da sala que estava encostada e entrar sem pedir licença.

Dei de caras com um homem que ficou tão espantado como eu por me ver, que devia ser um ladrão porque nunca o vira mais gordo vestido com um blusão de couro castanho em bom estado mas à justa nos ombros, que teria roubado a um sujeito mais magro. Calças de bombazina de bom corte mas rasgadas nos joelhos, onde raspou certamente com as pernas nalguma chapa para fugir à pressa de um anterior assalto. Trazia ainda um saco de lona e luvas de lã negras calçadas, a cobrir as mãos de que devia estar a suar por ser apanhado de surpresa e um lenço a tapar a face posterior do rosto, como se não devesse cobri-lo inteiramente, de vergonha pelo modo como ganhava a vida à custa de cidadãos incautos como eu.

Ainda por cima, falou-me com uma agressividade que o colocaria em posição de ser preso só pelo teor das ameaças que me fez, alegadamente para se defender, de arma de fogo apontada ao peito, como se dos dois fosse eu a representar alguma espécie de ameaça para alguém. Preveniu-me da intenção de premir o gatilho se acompanhasse a admoestação verbal que fiz, com um discurso que me saiu de improviso, com uma tentativa de recuperar o que era meu e ele ia enfiando no saco, da maneira que eu achasse que me legitimava o facto de estar na minha zona de conforto que não desejava partilhar com ninguém, muito menos com um estranho.

Com medo, remeti-me ao silêncio e a jogar à defesa, do género em que estivesse a jogar fora de casa contra um adversário que conhecia melhor as regras do jogo do que eu. Era mais velho e isso conferia-lhe a vantagem de saber antecipadamente que é do lado do mais fraco que costuma rebentar a corda quando é puxada com força excessiva. Por mim, já vira esta cena e sabia como acabava, em séries e filmes, na televisão e no cinema, respetivamente.

Porém, ao cabo daquele tempo, parecia mais espantado do que eu, embora devesse ser o contrário. Não sabia se fora por me ver aparecer repentinamente ou por saber que, afinal, era eu o dono daquela magnífica casa e ser a mim que pertenciam os objetos de valor e de tão bom gosto que estavam expostos na sala. Sim, eu, um sujeito magro a atirar para o lingrinhas, baixo mas não muito bonito e, pelos vistos, insignificante até para ele, pois ainda nem bem terminara de mirar-me de alto a baixo, já tinha guardado a carabina e retomado o enchimento do saco até ao peso que tinha a certeza de poder carregar às costas, decidindo que se eu era incapaz de representar o menor perigo, era também como se nem estivesse diante de si. Ficou boquiaberto durante três segundo e meio, não mais do que isso, ainda fui a tempo de contá-lo no meu relógio de pulso, que nem o facto de não ser de marca mo impediu de ser roubado dali a instantes.

O que quer?, atrevi-me a perguntar, e onde pensa que vai com tudo o que é meu?. Respondeu com o silêncio, baixando a cabeça, não corado de vergonha mas para apanhar um castiçal de prata que era da minha avó, aconchegando-o no saco que estava mais perto do que eu de rebentar pelas costuras e no qual consequentemente já quase nada cabia, felizmente! Foi como se um gato pardo idêntico ao que lamentavelmente perdi, lhe tivesse comido a língua e, ainda não saciado, lhe quisesse arranhar as costas e a cara. O cão rottweiler, que eu atiçaria, fá-lo-ia e mordê-lo-ia caso não tivesse fugido, obrigando-o a fugir com o que restava das calças de bombazina na mão. Vou doá-los a um necessitado que sou eu, respondeu finalmente da distância a que nos encontrávamos um do outro e que eu me preocupava em manter, porque não queria aproximações nem dar confiança a gente daquele género. Entre nós, além das naturais diferenças de caráter, ao lado do candeeiro, havia uma mesinha de mogno que o próprio limpara, de cima da qual desaparecera uma caixa de charutos mas não para dar lugar a um objeto de valor igual ou superior, como eu faria se estivesse a pensar em substitui-la no caso de me apetecer mudar a decoração da sala. Do pó já a empregada a limpara, na véspera, assim como sacudira as almofadas e os dois sofás, um de veludo maior, mas nem por isso menos confortável do que o outro que era de napa a imitar o primeiro.

Como é que conseguiu entrar?, voltei a interrogá-lo embora o indivíduo não se mostrasse perturbado, provavelmente habituado a interrogatórios mais severos, feitos em circunstâncias menos favoráveis numa esquadra de polícia, quando o detiam por suspeita de roubos mais avultados do que o efetuado em minha casa. Rodopiou, como ainda não o tinha visto fazer, no sentido dos ponteiros do relógio de cuco que ainda estava pendurado, a mostrar que não era de estranhar sentir-me sonolento porque à hora que marcava, sem incidências de qualquer género, costumava estar deitado a dormir.

Ao encontro da corrente de ar que decorria de uma das janelas ter ficado aberta, os cortinados de tule brancos, esvoaçavam e só nesse momento me apercebi de que, ao pisá-los à entrada, o sujeito os sujara manchando-os irremediavelmente com a lama das botifarras que por se terem esfregado nelas repetidamente estavam agora mais limpas e reluzentes do que nunca. Empestados de terra estavam igualmente os tapetes e o soalho de madeira, esfregado no dia anterior pela empregada que se encarregava de manter a casa limpa e a roupa aprumada.

Reparei como nelas sobressaíam os seus pés, demasiado grandes num corpo disforme, encafuados à força numas botas da tropa com as quais, se eu não engendrasse uma maneira rápida de expulsá-lo, acabaria por me patinhar o resto da casa. Todavia, mais sujas dos que o calçado que envergava, aparentavam estar calças e estas mais amarrotadas do que a camisa às listas roxas e amarelas sob o blusão de que dei conta anteriormente, que até a mim ficaria larga o que me deu a tranquilidade de pensar que não era nenhuma das minhas que pudesse ter ido buscar às gavetas da cómoda onde as punha passadas a ferro.

Tornando a virar-se, despediu-se de mim com um sonoro muitíssimo boa noite, a que não respondi. Foi a minha vez de ficar boquiaberto, tentando compreender como podia um sujeito tão pequeno, de fraquíssima constituição física, transportar sozinho um saco que, a julgar pela distensão dos músculos faciais, estar pesadíssimo! Não solicitou ajuda, mas mesmo que o tivesse feito, eu não lha dava, teria de ma roubar juntamente com a restante mercadoria que devia ir vender ao desbarato nalguma feira de antiguidades ou loja de venda de preciosidades em segunda-mão.

Saiu pela janela que o vira entrar à socapa, e eu limitei-me a sentar à espera do tempo passar, porque perdera o sono e a ideia de retornar à cama não me seduzia. Quanto à janela, de persianas levantadas por onde entrariam dentro de escassas horas os primeiros sons da alvorada, não me apressei a fechá-la com medo de que entrasse mais alguém. Não havia grande coisa para roubar a partir daquele momento. É que afinal de contas, os meus objetos de maior valor já iam dentro daquele saco.