O avião que voou para o quintal

Josué Cristobal Gonzalez, o caribenho, acordou cedo com o pressentimento de que um avião cairia nesse dia no seu quintal, pelo que tratou logo de avisar as autoridades, que lhe escutaram a queixa sem fazer um reparo, mas rindo como se, àquela hora, achassem natural ter já bebido tanto que pudesse apresentar-se-lhes bêbedo.

Josué vivia afastado do centro da aldeia desde que enviuvara, numa casa caiada de branco, decorada nas janelas, onde havia portadas de madeira, com cortinas de um tecido grosso que parecia ter sido arrancado às velas dos navios em que embarcaram os primeiros navegadores espanhóis que a partir daquela parte da atual Colômbia conquistaram a América.

Era um sujeito carrancudo, desembaraçado mas com pouco jeito para as letras. Por isso, a falar não era tão hábil que das suas palavras alguém pudesse intuir um sentido diferente que ele pretendia dar. Contudo, era um excelente artesão e das suas mãos costumavam sair figurinhas de barro em representação de profissões que por toda a região de Barranquilha e da foz do rio Magdalena eram tão antigas como a sua.

Algumas já nem existiam e só constavam nos manuais onde descreviam a vida de há umas décadas. Eram antigos aguadeiros que vendiam batendo às portas; autores de cartas com juras de amor eterno, para os pares de namorados que não sabiam escrever, em troca de um punhado de moedas; vendedeiras, que apregoavam os artigos que carregavam numa canasta e até capatazes de cujas plantações de cana-de-açúcar os negros escravos se evadiam param as zonas onde a apanha do produto já fosse feita de forma mecânica e não manual.

Josué deitara-se na véspera com um mau pressentimento, como se carregasse um peso nos ombros ou pairasse à sombra de uma ave medonha sobre cujas asas abertas não conseguiam vislumbrar a cabeça. Custara-lhe terrivelmente a adormecer e demorara tanto tempo até ficar ensonado, que, de manhã, com um laivo de sol na cara, acordara estremunhado de um sonho, pensando ser ainda tão cedo que de bom grado quis virar-se para o outro lado para, de lençol enrolado na cara, continuar a dormir.

Só andara assim, com aquele estado de espírito sombrio, quando ao tempo em que também era pescador, saía para a faina a um par de milhas de costa sem saber se, no caso de ser surpreendido por uma tempestade, as ondas em direção terra lhe trariam a embarcação intacta à praia, como ao entulho que na manhã desses dias inundava o areal trazido de noite pela maré.

Numa ocasião há muitos anos e já de regresso a casa, o pequeno barco em que seguia naufragou tragicamente e eles só não se afundou com a restante carga que enchia o porão, porque num ato legítimo de salvação se agarrou como pôde a um par de troncos que acabaram por, ao cabo de umas horas, dar à costa, o mais não fosse para justificarem que nem todas as coisas que lá iam dar eram inúteis e não tinham qualquer espécie de aproveitamento para ninguém.

No período seguinte ao naufrágio, logo nos dias após ter recuperado do acidente num hospital de campanha improvisado para acorrer ao sinistro, Josué evitou deixar-se ver na rua pelos vizinhos e a pouco-e-pouco foi começando a viver isolado do mundo como um eremita que só raramente saía de casa, como se na presença física de outras pessoas, alguma ilegitimamente pudesse vir a acusá-lo da má-sorte da embarcação que acabara por perder os restantes tripulantes.

Atormentado pelo desgosto, deixou crescer a barba livremente, o cabelo e, com a mudança dos hábitos alimentares, tornou-se amante dos animais e adepto da comida vegetariana. E passou estranhamente a falar com animais, sobretudo vacas e cavalos, como se deles esperasse obter informação de como continuar, de forma fácil, a comer verduras e ervas daninhas, simplesmente achando-as deliciosas.

Por via do seu comportamento, que não visto com agrado pela maioria da população residente na aldeia, Josué ganhou fama de louco e lentamente as pessoas começaram a afastar-se do seu convívio, ao mesmo tempo que as autoridades o impediam de continuar a frequentar alguns lugares públicos, tais como jardins às horas diurnas de maior afluência, como se de lá pudesse ressaltar a ideia, a quem viesse de fora e visse, que lá por conviverem juntas no mesmo local todas as pessoas eram de comportamento bizarro e tão ou mais esquisitas do que ele.

Josué trazia sempre os olhos esbugalhados e, ao centro do rosto, um nariz com a forma de pirâmide. A boca era estreita e ténue a possibilidade de ouvir dela palavras de esperança. Até o maxilar era deformado e as rugas desenhavam saliências no rosto.

Aos quarenta anos de idade e alguns meses, tinha um ar desgastado, tendo-se transformando rapidamente num homem amargo ao qual, por mais defeitos que apontassem e dissessem que parecia um velho, ninguém parecia conseguir arrancar um sorriso ou a menor evidência de que tinha vontade de mudar e adotar um estilo de vida mais saudável. Não se lavava e vestia-se como um mendigo. As roupas andrajosas e sujas, muito embora para os sítios escabrosos que começou a frequentar, elas parecessem ter sido feitas de encomenda.

Talvez o tivessem afetado as cenas de sofrimento que presenciou no mar revolto, que num ápice lhe engoliu a esperança dali a muitos anos vir a ter um final feliz. O ter-se sentido impotente para num momento de aflição, conseguir salvar os companheiros. O certo é que desde o dia do fatídico acidente no mar, não tornou a ser o mesmo. Do homem afável que a qualquer cumprimentava alegremente como se fosse a que desejava encontrar naquele momento, já só restava a ténue lembrança visível num rosto cuja expressão já não era a sua.

Agora, era normal ir na rua e já ninguém lhe dar ouvidos, mas nem sempre fora assim e, por isso, ele constantemente alertava as pessoas com quem se cruzava na rua, acerca de premonições cuja gravidade ele só lamentava não ter podido prever na véspera do dia em que saiu com um grupo de pescadores para o mar em busca de sustento para as suas famílias.

Esta noite, vai cair um avião no meu quintal! Gritou ele, irrompendo nervoso por entre os militares no Posto da Guarda, que desataram a rir da impossibilidade de escutarem uma notícia que seria tão descabida como pensar que aquele lugar pudesse gerar algum acontecimento de repercussão à escala do planeta como acontecia ao nível dos países mais importantes.

Eram nove da noite quando Josué Cristobal Gonzalez recolheu a casa e poucos minutos volvidos escutou-se um estrondo que abalou um quarteirão de casas construídas de madeira e tijolos assentes em barro. Foi um estouro em tudo semelhante ao rebentar de uma bomba de conteúdo igual ao somatório de todas as quantidades de pólvora que foram usadas até ao término da segunda guerra mundial.

O impensável aconteceu e a revelação abriu todos os espaços noticiosos. Num ainda não famigerado local, na noite daquele dia caiu, despenhou-se uma aeronave de setenta lugares transportando uma equipa masculina de futebol equatoriana que ia jogar ao Peru, causando a morte de todos os ocupante e mais um: Josué Cristobal Gonzalez, que por causa do calor saiu de casa e agarrado a um acordeão, enquanto entoava um merengue, morreu calcinado, como se tivesse sido atingido por um raio, em pleno quintal.