British Bar Museum

Cá fora, um par de colunas a bombar os êxitos da última década, convidava os forasteiros a entrar para um período contrário à introspeção. Vivia-se a época áurea em que, com tantos motivos de interesse, os compositores de hip-hop facilmente punham a rimar o sentimento de revolta com as débeis condições de vida de uma franja considerável da população.

Entrei para ouvir se do lado em que escutara o som de uma voz a falar português com sotaque algarvio, alguém me dizia ao que sabia uma estranha bebida de nome Samanta Fox que vi anunciada. Não estranhei, na foto exposta num cartaz sobre o balcão, ter um aspeto irresistível e deliciosamente fresco como eu achei que deveria ficar depois de beber umas três ou quatro.

Num copo alto coroado com uma azeitona verde espetada num palito, o sabor da substância licorosa que o enchia até ao rebordo, devia resultar de uma miscelânea interessante de ingredientes, em cuja fórmula que não faltaria incluir nenhum para ao gosto do cliente ela sair perfeita.

Vi beber um cocktail igual àquele, uma mulher espampanante que estava sentada ao balcão de pernas abertas sob um vestido de linho, como se só desse lado em que apenas havia uma empregada de avental, ela soubesse que estava protegida do olhar indiscreto de um estranho que viesse incomodar-lhe o seu sossego.

Tinha o cabelo louro com extensões, do tom de que o pintam as mulheres ousadas que se deitam com os maridos a gostar que eles pensem que na verdade elas são outras. Soprava das narinas, fumo de uma cigarrilha castanha que exalava o cheiro incomodativo a pólvora de um fósforo acabado de acender.

Estava bem conservada, mas devia rondar aquela idade em que de uma mulher se diz que há muito tempo amadureceu, enquanto para um homem basta concluir que está finalmente a entrar na idade adulta.

Disse-me a empregada, que tinha cinquenta e sete anos inacabados, mas, em minha opinião, pela frente eu apostaria que tinha mais anos de vida do que muitos homens mais novos que se gabam de nunca terem sofrido de uma mera dor de dentes ou enxaqueca.

Encantou-me desde a primeira troca de olhares. O ar pomposo de primeira-dama, tão bem vestida e calçada que dir-se-ia pronta para sair dali diretamente para uma cerimónia oficial de tomada de posse no Palácio de Belém ao lado do presidente. E eu, que tinha somente dezassete anos, achava que junto dela podia vir a ser uma espécie de filho pródigo que tinha regressado a casa para até ao meu último suspiro vivermos um grande amor.

A decoração do bar chamou a minha atenção por alguns pormenores. Exposta numa vitrina, uma guitarra Fender datada de setenta e seis, tinha as cordas partidas, talvez do esforço a que a sujeitou um músico inexperiente que, de outra forma, num concerto ao vivo não conseguiria acompanhar o ritmo frenético do baterista.

Noutra, um blusão de couro esgaçado nas mangas, marcava o lugar a partir de onde não se conseguia passar para a casa de banho, a não ser pelo meio de uma secção de roupas que mostrava como se vestiam os roqueiros da década de setenta do século vinte. Noutra, numerosos crachás, símbolos de outra era, tão fora de moda como as frases de inspiração pacifista neles inseridas, de apelo à não proliferação de armas nucleares no planeta. Entre as duas, pela leitura de recortes de jornal, ficávamos a conhecer, pelos concertos que tinham dado, os locais por onde tinham passado as bandas mais famosas, se bem que do tempo em que esses músicos não eram famosos, continuávamos sem saber por onde é que tinham andado e muito menos o que tinham estado a fazer.

Havia um daqueles touros mecânicos, com vista a ser montado por um cavaleiro intrépido que de música mal reconhecia as notas das canções de embalar e uma jukebox vermelha com dezenas de discos de vinil a lembrarem que não era só do material diferente dos atuais cd’s que antigamente a música era feita.

Ainda sem ter bebido nada, senti a cabeça a andar à roda, mas deve ter sido de ver juntas mais peças de coleção do que haveria se juntasse o espólio do museu da Gulbenkian ao da Fundação de Serralves, acrescido das bolas de ouro de Ronaldo que estão expostas na cidade do Funchal.

A mulher que fumava defronte do balcão, levantou-se e acomodou-se num sofá de canto com vista privilegiada para a televisão de mais de cem polegadas. Passava a repetição de um jogo de futebol entre equipas inglesas que se arriscavam a não terminar com todos os jogadores em campo, se estes insistissem em agredir-se mutuamente como se lutassem entre si para conquistar a sua simpatia.

Nesse instante, ela virou-se e focámos o olhar um no outro, comos e desconfiássemos que nos conhecíamos do tempo em que se usava um cavalheiro ir apresentar-se aos pais antes de lhe dirigir a palavra dizendo que tinha permissão para casar com ela.

Cobriu-lhe o rosto, um manto de vergonha por me ter feito corar. Deve ter concluído que eu era um rapazola inexperiente, assim uma espécie de aluno que nunca tirara boas notas e agora queria numa só noite aprender o suficiente para passar de ano com distinção.

Virou-se para a pista de dança ao centro, onde um homem de aparência normal, com idade para ser meu pai, abanava o esqueleto freneticamente, como se quisesse seguir em todas as direções ao mesmo tempo, projetando o corpo na direção da rua, ao mesmo tempo que ia no sentido contrário esticando o braço para alcançar no balcão a caneca de cerveja que lá tinha ficado em cima a aquecer. Trajava uma camisa florida, largueirona e toda amarrotada como se a tivesse pendurado sem cabide num roupeiro que descera uma ravina aos trambolhões.

Chegou-me ao cérebro do perfume dela, que era refrescante como a sensação de uma camisa acabada de trocar. Era inebriante e insinuava já ter estado no corpo de outra mulher. Lembrou-me vagamente uma antiga namorada de quem não consigo recordar o nome porque insistia em que sempre lhe chamasse querida, mesmo correndo o risco de vir atender o telefone de lá de casa, uma irmã mais velha que já tinha namorado e podia não achar graça.

Era uma fragrância suave dessas que não se entranham nas narinas e através da qual denotamos estar na presença de uma mulher de bom gosto, que para cair nas boas graças de um homem não se importaria que ele passasse a chamar-lhe flor.

Desisti de querer descobrir ao que sabia o misterioso cocktail com o nome da cantora pop, que a muitos rapazes na adolescência deve ter dado vontade de apanhar uma bebedeira para esquecerem que não era o género de mulher que estava ao seu alcance, como uma a quem mandam um bouquet de flores acompanhado de um cartão com dedicatória.

Saí do bar triste mas passando a amar o povo inglês pela forma descontraída de estar. Tanto, que em todos os lugares onde vou, nas saídas noturnas já não dispenso pedir um Samanta Fox on the rocks, que não passa de um cocktail à base de citrinos, servido com tanto gelo nalguns bares, que acabo por mal conseguir distingui-lo do sabor clássico do Britney Spears on ice de que comecei a gostar pela mesma altura.