Conto: O amor não aceita avisos

Os dois confundiam-se agora, não antes, não depois, o presente era deles, embora estivesse ausente o toque da pele. À medida que o telefonema avançava, tornava-se óbvia a pirosice com que tudo aquilo terminaria.

– Desliga lá. – dizia ele, na esperança de manter alguma dignidade.

– Desliga tu. – retorquia ela, cheia daquela paixão miúda que por mais que seja sacudida não nos deixa por nada deste mundo.

Estiveram nisto não menos de vinte minutos, mas depressa Nuno acabou por ceder à chegada do seu melhor amigo e irmão, Tiago. Um homem de gestos nortenhos, abertos e afáveis, mas ao mesmo tempo com aquele seu quê do que agora se convencionou chamar de bullying.

Como seria de prever, não foi preciso muito para o amigo e irmão perceber o nervosismo alheio.

– Como é? Para quando é o casamento? – disse ele, para óbvia atrapalhação de Nuno.

Ao desligar, e antes de ser interpelado pelo gozo a que estava destinado, foi avisado por uma mensagem vinda do telemóvel que não completou a leitura. A mensagem falava no terrível caso “amor-venenoso” e seus adiantamentos e avisos.

Mas antes que pudesse ler a mensagem, o inebriamento causado pelo amor não aceitou avisos.

– Não sei, não sei… – respondeu ele, muito envergonhadamente.

– Isso é mesmo sério, nunca pensei. O homem que nunca iria na sua vida apaixonar-se, padecer dessa doença comum ao proletariado… quem te viu e quem te vê, maninho!

– Não sei… talvez, diria que ela é tudo aquilo que eu nunca consegui imaginar.

– Ui… como isso está!!! Tenho que começar a aprender romeno, é isso que se fala lá, não é?

Nuno queria fugir, e as suas preces foram ouvidas quando a tv do café onde os irmãos estavam começou a relatar os últimos avanços na investigação sobre o já citado caso “amor-venenoso”.

“O assassino acredita que o amor é o veneno que destrói o ser-humano, matando com a mesma mistura de ervas, no seu entender, que acabou com o amor de “Romeu e Julieta” na célebre obra com o mesmo nome vários casais pela Europa fora. Desde ontem, a polícia judiciária pediu-nos para difundir a imagem…”

– Jovem, não dá para por na bola? – interrompeu o aviso Tiago, ao qual o dono do café acedeu prontamente.

– Bem, tenho que ir, vou buscá-la à central de comboios.

– Não te atrases, maninho. Para a semana quero conhecer a minha futura cunhadinha.

E assim, sem respirar se foi, sustendo o fôlego até a ver.

Já no carro, e para distrair a ansiedade que apertava o peito, colocou uma rádio qualquer.

“Porto, Benfica e Sporting desentendem-se novamente, desta vez, sobre a existência ou não de pastéis de bacalhau no catering da Liga Portuguesa de futebol. Sobre a actualidade, novos desenvolvimentos no caso “Amor venenoso”, continua a fazer eco a mensagem da PJ enviada para todos os canais de informação em que…”

Mas mais uma vez, o amor não aceitou avisos de fora, a leveza dum homem apaixonado não dá ouvidos para mais nada que não sinos virtuais de felicidade. Depressa mudou de estação e encontrou adequado ao momento, “all you need is love” .

E a cantarolar lá foi ele para dentro da estação, calcorreando os corredores a voar, mais leve que uma pena. E a cantarolar a viu, doce, bela, diria que cintilava ao lado do cinzentismo dos meros comuns não apaixonados ao seu lado, como se ele fosse o sol que acendeu aquela lua, ou o contrário também serviria.

Os dois aproximaram-se sem dar um passo, como se o poder de atracção de ambos os juntasse sem o mais pequeno esforço físico.

Nenhum dos dois reparou que estavam a ser observados por um homem nada leve, alguém que não percebia o que era o amor, ou quiçá, a idade secou-o com um qualquer devaneio não correspondido ou fora de validade. Os seus aparentes cinquenta anos assim o indiciavam, enquanto fingia ler o jornal.

E assim, não estavam sozinhos, porque depressa o homem guardou o jornal, e com a mesma pressa segui-os por corredores de gentes intermináveis, os passos lentos e pouco atrevidos deram depressa lugar à corrida, e com ela veio o desespero, Nuno e a jovem amada estavam a sair do seu campo de visão. E quando estava tão perto, caiu, levantou-se, e perdeu-os.

O amor não aceitou mais uma vez avisos, quando no jornal um retrato robô que era cara chapada de Nuno ficou visível, com um procura-se à moda do faroeste seguido das palavras: “Caso Amor venenoso: assassino pode ser português”.