Conto: A última oportunidade terráquea (Humanidade)

O silêncio acordou-os. Estávamos no ano 279 da missão e ele era um qualquer mito espacial. Sobressaltados, procuraram algum dos mil tripulantes usualmente barulhentos, e mil encontraram, mil cadáveres. Eles eram os escolhidos.

E pensar que o dia anterior tinha começado com o estrondo duma tripulação em festa, tinha chegado a altura de Tiago e João, os inseparáveis amigos, fazerem o juramento.

A nossa missão, a nossa razão de existir, a nossa devoção, é salvar a humanidade da extinção. Por este desígnio sacrificarei a minha vida, a vida dos meus colegas, a vida da minha presente e futura família. Pela humanidade e só pela humanidade.”

De frente para o botão, com o portal construído, já numa espécie de terra firme, eles repetiram as mesmas palavras, agora sabendo o exato significado das mesmas.

Abraçaram-se, foram a única companhia um do outro nos últimos 20 anos, em sinal de agradecimento, Tiago convidou João a abrir o portal da nossa salvação, por onde milhões de refugiados terráqueos passariam. Este avançou.

      – Espera!!! – ouviu João. – Talvez devêssemos pensar numa lógica. O momento é solene.

     – Carrega tu. Não me importo. – respondeu de seguida, com o descomprometimento habitual.

      – Não assim, só queria alguma lógica. – retorquiu Tiago.

A discussão tinha começado, mas pelo interesse da humanidade… e só na humanidade.

Timidamente, de semblante ingénuo, aquele que tinha Coutinho no nome, aludiu que o arquiteto da missão, o primeiro comandante, o mito com 300 anos de história se chamar Artur Coutinho.

      – Talvez seja lógico o nome do primeiro perdurar no nome do último. – disse Tiago Coutinho, descendente de Artur Coutinho.

O amigo aceitou com naturalidade, fazia sentido. A simbologia é inerente à humanidade, e o seu juramento era para com ela e só com ela.

O botão viu então um dedo aproximar-se, esperava por ele há centenas de anos, até que… mais uma vez, algo abortou a viagem.

      – Talvez os símbolos sejam um sinal do futuro e não do passado. Quantas doenças existirão nesta planície? Quantos doentes sairão desse portal? Porque não um curador como símbolo da nossa sobrevivência? – questionou, o médico João Martins.

Pedra, papel ou tesoura?”, como na adolescência, a solução para os problemas sem… solução.

A última vez que tinham recorrido a este estratagema, o futuro amoroso de Mariana, a mais bela adolescente espacial de sempre, estava em jogo. No dia do juramento.

João disse papel. Tiago atrasou-se propositadamente. Ambos riram-se. Olharam para ela. E viram-na dividir-se em duas partes iguais. A festa continuou por mais um eterno segundo. Depois, bem, depois todos correram em direções opostas, como formigas ao sabor da vontade alheia duma criança mimada. Muitos morreram. Normal, a naturalidade com que os engenheiros faziam o inventário dos estragos assim o ratificava.

Silêncio, esse ninguém o ouviu.

Já me esquecia, de volta a terreno firme, ganhou João. Tiago não aceitou, este jogo é mesmo um embuste, espacial, terrestre e o solo alienígena não era excepção. A sorte não iria, não poderia decidir quem carregava naquele botão.

      – Lembras-te da Mariana? – perguntou João.

      – Sim. – respondeu Tiago, com a cabeça caída.

Elogiaram a beleza, o olhar, a forma como se ria da atrapalhação deles na sua presença. E perceberam, que aquele momento, tinha sido o último da pouca adolescência que lhes foi permitida.

      – Já lhe perdoaste?

      – Não há nada para perdoar. Ele fez o que tinha que fazer. – respondeu Tiago.

Mentiu, havia um culpado, havia um nome naqueles mil cadáveres que ele nunca esqueceu. Um nome que lhes tinha deixado uma mensagem no seu colo, também já sem vida.

Olá rapazes. Esta é uma mensagem do vosso comandante. O abalo que sentimos no dia de ontem, não só matou alguns tripulantes, como também acabou com mais de metade das máquinas que preservam a nossa vida. Poderíamos esperar, reparar os estragos, sobreviver. Mas a humanidade na Terra não tem mais de 30 anos de validade. Por isso, ordenei o suicídio de toda a tripulação. As crianças foram as únicas que não fizeram parte da escolha, felizmente. O fardo coube aos pais. Vocês, bem, ficaram a saber o que o juramento significa. Agora, são a nossa última esperança, a última esperança da humanidade. Foram salvos, porque estavam na idade certa, tinham o índice certo de imunidade a diferentes patologias, e são… amigos. Despeço-me com a certeza que irão cumprir o juramento, como nós o cumprimos. Pela humanidade e só pela humanidade.”

Existia uma nova mensagem, nunca ouvida. Tiago reagiu com violência, a imagem da pequena irmã no colo inerte da progenitora de ambos era demasiado cruel para ele se conter.

Partiu todos os computadores e afins que conseguiu encontrar, incluindo aquele que continha a nova mensagem.

Tiago estava pronto a acompanhar a família, mas João interveio, pela vida do amigo, lutou. Como agora teria que voltar a fazê-lo.

      – E se lutássemos? – questionou Tiago.

      – Queres andar à porrada para decidir quem carrega num botão? Carrega lá tu, eu não vou entrar nessas disputas.

      – Sempre o bonzinho, o melhor, o controlado. Não podes voltar costas, tens uma obrigação com o mundo, luta, essa é a nossa identidade.

Instado, sem alternativa, João respondeu com punhos, e a eles seguiram-se pontapés.

Os dois lutaram como já o tinham feito outrora, lutaram não só pela vida, mas pela vida de outros.

João ganhou a luta mais uma vez, como há 20 anos atrás, e ajudou Tiago a levantar-se… como há 20 anos atrás.

Este, aceitou tudo, inclusive a ingenuidade alheia, e com uma pedra fez desmaiar o vencedor, proclamando-se a si próprio o salvador da humanidade.

      – Desculpa, mas tenho que ser eu. Eu sempre tive pena de ti por nunca teres conhecido os teus pais. Mas, naquele dia, em que o meu comandante matou a minha mãe, a minha irmã, e toda a gente que eu conhecia… Invejei-te. Como é que um tipo pode continuar sabendo que o pai é um psicopata? – disse Tiago ao inconsciente amigo.

Sem mais demoras, avançou. O botão não era mais de salvação, mas de consagração.

      – Nunca te perdoarei. Por mim, e só por mim.

Foram as últimas palavras saídas da boca de Tiago. João golpeou-o por trás fatalmente.

De forma eloquente, a humanidade estava apresentada à sua nova casa. Fundados na luta, refundados na luta.

      – Sabes porque te salvei, porque não queria ficar sozinho. E lutei por isso. Eu é que sou o salvador, sem mim tinhas ficado lá, junto com os outros. O teu pai fez o que tinha que fazer, eu fiz o que tinha que fazer!!! – gritou a chorar João.

Sem demoras, carregou. Sem razão, nada aconteceu.

Desesperou com ninguém, argumentou com a máquina, encasquetou com o botão. Durante meses, fez tudo e só isto, sem vislumbrar uma solução. 

Até que um dia, o 36º dia alienígena, equivalente ao 6º ano terrestre desde que o ser-humano se deu a conhecer à sua nova casa, fruto de mais um fracasso, a resiliência da esperança deu lugar à impetuosidade do desespero. E nele, estranhamente, encontrou respostas, quando a desarrumação provocada pela raiva descobriu uma mensagem perdida. “Comandante”, era a única palavra na capa. 

Lá, descobriu que a força para fazer juntar dois mundos necessitava de duas fontes de energia.

E tudo passou a fazer sentido, dois mundos, duas fontes de energia, dois botões e duas vidas. Mas faltava uma, e por uma, a missão falhou.   

A humanidade mordeu a mão à… humanidade.