O dia em que fui traído pela minha mulher…

Existe na vida de um casal um flagelo que perdura por toda a vida. Por mais confiança que possa, eventualmente, existir, a verdade é que esse flagelo está sempre presente. Falo, obviamente, de traição. Um homem pode confiar a sua própria vida à sua cara-metade, mas a verdade é que existe sempre um pequeno receio a inundar a sua vida de casal – o facto da possibilidade de, um dia, chegar a casa do trabalho e encontrar um energúmeno escondido no roupeiro ou debaixo da cama, e a sua esposa na cama com um ar comprometido. Por mais que se negue esse facto, a verdade é que ele existe verdadeiramente. Não há volta a dar.

E, infelizmente, esse flagelo chegou e instalou-se na minha vida. Fui traído. E de forma descarada. Sinto-me impotente e, ao mesmo tempo, sem saber o que fazer. Coloco tudo para trás das costas e finjo que não se passou nada e prossigo com a minha vida de casal, ou enfrento a situação, agarro o touro pelos cornos e seja o que Deus quiser? Não sei o que fazer. Sinto que não posso fazer nada para contrariar o facto de ter passado automaticamente para segundo plano na vida da minha mulher. E isso é duro para um homem.

Esta crónica tem o intuito de servir como desabafo. Por isso vou explicar detalhadamente tudo o que passou até descobrir que fui traído pela minha mulher. Há cerca de um mês atrás, a minha cara-metade interrogou-me sobre o facto da necessidade de adquirirmos um bem essencial para a nossa vida. Como temos uma filha de 17 meses, isso tornava-se bastante imperativo. Confesso que estava longe de entender que “bem essencial” era esse até ela decidir aplicar um nome à coisa: uma Bimby. Eu compreendo que, para uma dona de casa – e mãe de uma pirralha –, a Bimby é algo que ajuda muito no seu dia-a-dia. Ao princípio neguei. Achei que não havia necessidade da existência de tal utensílio na nossa vida familiar, mas aos poucos e poucos comecei a interiorizar a ideia. E, num ápice, tínhamos a dita cuja a invadir a bancada da cozinha e, por conseguinte, a nossa vida.

Até aqui tudo bem. Até que, a dada altura, comecei a notar uma ausência da parte da minha cônjuge na minha vida. Chegava a casa e lá estava ela na cozinha. Estávamos na sala a ver televisão, e lá saía ela disparada para a cozinha de telemóvel na mão. Acordávamos de manhã, e quando eu me preparava para uma visita ao paraíso na sua companhia, olhava para o outro lado da cama e já não estava lá ela – estava na cozinha a namoriscar o seu novo amor. A comunicação começou a escassear aos poucos e comecei a sentir-me cada vez mais sozinho em casa. É verdade que a Bimby veio trazer mais facilidade na nossa vida, no que toca a elaboração de verdadeiros manjares gastronómicos, mas no que toca a “mais tempo disponível” para a vida familiar que a Bimby tanto prega, não acontece. Pelo contrário. A minha esposa prefere passar mais tempo a acariciar o seu novo brinquedo do que propriamente o homem da sua vida.

Decidi dar um tempo para ver se ela começava a perder tanto interesse na sua Bimby e virar-se lentamente para o meu lado. Não resultou, pois ela claramente prefere a traquitana fazedora de cenas alimentares muito gostosas do que ao pai da sua petiz. Perdi a paciência e decidi confrontá-la várias vezes com essa questão: “Amor, tens de decidir o que fazer, ou eu ou a Bimby, porque três numa relação já é uma multidão e eu não aprecio essas doidices…”

Ela não gostou. Disse que a Bimby veio facilitar a nossa vida de casal. Que agora podia ter tempo para fazer iguarias deliciosas para mim. Eu ripostei, dizendo que a única iguaria deliciosa que queria na minha vida era ela. Não serviu de nada. Ela continuou a dizer que a Bimby era a melhor coisa que tinha surgido na vida dela, e que eu estava apenas a ser implicativo. Irritei-me e, friamente, coloquei as coisas nos seguintes termos: “Tens de escolher! Ou a Bimby ou eu! Não aguento mais ser colocado em segundo plano!”

Criou-se um clima tenso e complicado. Durante largos minutos não falámos um com o outro. Ela decidiu desaparecer e durante meia-hora não soube dela. Até que, a certa altura, ela chamou-me à cozinha. A receio, lá fui. Não sabia o que ela ia dizer, mas parecia-me que ela tinha chegado a uma conclusão que ia mudar, ou não, a nossa vida.

Quando cheguei à cozinha, ela estava pávida e serena a olhar para mim. Olhei para ela, e quando ia começar a falar ela deu-me algo para a mão. Tratava-se de uma baba de camelo elaborada pela Bimby. Que é — só e apenas! — a minha sobremesa preferida. Entrei em colapso, o coração a bater de forma descontrolada e fiz aquilo que já devia ter feito há mais tempo: sentei-me à mesa, peguei na colher e devorei a baba de camelo em segundos.

No final, olhei para a minha cara-metade, aproximei-me dela, dei-lhe um beijo e, de seguida, um abraço. E sussurrei-lhe calmamente ao ouvido as seguintes palavras:

“A Bimby foi a melhor coisa que nos aconteceu na vida, não foi…?”

Ela sorriu, e foi cada um para seu lado…

Isto é que é uma Vida de Cão, hein…