Diário da Guerra Colonial – Primeira Parte – “Mobilização e Embarque”

Hoje sinto os anos pesarem-me mais do que o tempo.
Neste dia, que não esquecerei, de Março de 1970, embarco rumo a África.
Os meus jovens 21 anos de idade pesam-me bem mais no franzido do rosto e na dor que sinto por partir…

Depois de ter sido convocado para cumprir o Serviço Militar Obrigatório e de ter concluído a recruta, fui colocado no quartel da Trafaria, onde cumpria o resto do tempo que me faltava como operador cripto.
Num Domingo, que me parece agora há demasiado tempo, chamaram-me com urgência para descodificar a mensagem prioritária que acabara de ser recebida.

Enquanto lia aquela mensagem nada mais podia fazer do que conter as lágrimas… um calafrio percorria-me de alto a baixo.

Gélido e com um nó no estômago, comunicava a mensagem em voz alta, que me mobilizava, e a outros tantos como eu, para a guerra.

Imaginem-se com 21 anos, recém-casados, com uma ligação forte à família e com raízes profundas na cidade que vos viu nascer, com sonhos e projetos de vida que nem por um momento passavam pela carreira militar, a serem mobilizados para uma guerra além mar, para a qual nem sequer encontravam sentido ou razão…

As minhas maiores disputas eram com a arbitragem quando jogava profissionalmente futebol…
Ou por vezes com aqueles amigos com de quando em vez havia uma qualquer desavença que nos faz a todos subir mais alto de tom…

Guerra?… Nunca tal tinha estado nos meus projetos e sempre tinha alimentado a esperança de que quando chegasse a fatídica altura, ela já estivesse terminada.
Mas não. Fui mesmo mobilizado para ir para o que chamávamos de Ultramar, para uma guerra a que só alguns podiam escapar, e que a maioria de nós, jovens rapazes, filhos da classe do proletariado, com ambições burguesas mas de pés bem assentes no chão, não conseguimos fugir.
Soube nesse momento que me esperavam 24 meses de serviço militar na guerra colonial, se tivesse a sorte de sobreviver esse tempo.

Esperava-me portanto a guerra… a morte certa para muitos… a loucura para muitos outros, que regressariam sem memória do que haviam sido antes da guerra… a deficiência física e motora, para outros tantos… e, para os mais afortunados, o regresso com vida e sanidade física e mental para prosseguir o seu caminho, com as memórias escondidas dentro do peito, que nos tornavam agressivos e impulsivos num repente… que levavam alguns por vezes a beber um pouco mais do que a conta… que nos iriam trazer, durante muitos anos, sonhos de pesadelos vestidos, em que o barulho ensurdecedor de uma emboscada era um eco infinito… gritos, dores, sangue e mágoa… impotência… anos e anos perpetuados na nossa mente, entre rajadas e minas que explodem, sem saber onde…ao nosso lado…dentro de nós…

Anos a olhar por cima do ombro… a dormir com uma faca ou um punhal junto à cabeceira… indefinidamente em guerra…uma guerra perpétua…que não cessa…
Naquele derradeiro momento em que era chamado…nada mais havia a fazer.

Tinha sido mobilizado para a guerra.

Num dia de neblina, cuja data ficou para sempre marcada na minha memória, partia então para uma viagem, sem saber se chegaria a hora do regresso a casa, para juntos dos meus, de volta à vida…
Uma guerra selvagem…Como todas as guerras são.
Não importa quão tecnológicas possam ser agora… Selvagens e desumanas.
Perdem-se vidas…Em nome de um nada qualquer, de um erro político que a Diplomacia e o bom senso não souberam, ou não quiseram resolver…
Quis a sorte que embarcasse no navio “Império”, numa viagem comercial, onde apenas iam cerca de noventa militares, entre muitos civis.
Os contingentes normais que habitualmente embarcavam em navios de natureza militar, eram bem diferentes…levavam entre dois mil a quatro mil jovens militares…as partidas do porto eram lágrimas de dor e de horror…

No navio onde embarquei, a amargura vestia-se de forma mais discreta… por entre civis que apenas iam de regresso a casa ou em lazer, esquecíamos por momentos o nosso destino e o que nos poderia acontecer…

Mas as nossas fardas militares não o permitiam fazer por muito tempo, nem as lágrimas dos nossos, os que aqui deixávamos (nem as nossas)…

O meu destino era a Beira, em Moçambique, e tanto eu como os que partilhavam esse destino comigo, bem como as nossas famílias, tranquilizávamos os nossos pensamentos por isso… Moçambique não era considerada uma das piores zonas de guerra…(como se pudessem existir zonas melhores do que outras numa guerra…).

No cais da Rocha de Conde d’Óbidos, em Lisboa, partia o navio onde iria para o Inferno… eu, entre tantos outros, a bordo…

Tínhamos vinte e um, vinte e dois anos, não nos tínhamos voluntariado, deixávamos a nossa vida, toda a nossa vida, ainda a ser erguida, naquele cais.

Não queríamos ir para a guerra, nem ser heróis, nem éramos militares de carreira…
Nem tínhamos qualquer simpatia pela causa…Nem deixávamos de ter…
A preparação que havíamos tido na recruta e nos quartéis parecia agora uma brincadeira de crianças…antes acharia eu que me preparara para a vida…

Agora tinha a certeza de que não me podia ter preparado para a guerra, nem para África, nem para a vida…muito menos para a morte.

Disse adeus e acenei até avistar pequenos pontos ao longe, onde me esforçava por ver os rostos dos que havia ali deixado…naquele cais…Nada se via dos olhares quentes e molhados de cada um deles, dos meus familiares muito amados…
Isolei-me dos restantes…

Fui para junto da chaminé do navio e fiquei a olhar o cais até o perder de vista…
A garganta seca, peito apertado, um nó que não conseguia desfazer-se, lábios cerrados…
As lágrimas, que nunca antes chorara, rolavam soltas pela face, uma após outra…em silêncio contido…
Saudades dos meus… Saudades de mim…
A guerra e África esperavam-me…

Antes disso uma viagem longa pelo mar, dobrando cabos de tormentas numa explosão de emoções contidas, e cabos da boa esperança de um dia poder regressar…com vida.
Por agora fico por aqui. Amanhã escrevo mais. A viagem continua…
Estou cansado… Vejo apenas umas luzes ao longe, parecem Cascais…
O mar escuro abraça a saudade, e engole-a de um trago.
Adormeço.