Rio Luatize / Ponte

Diários da Guerra Colonial – 3ª Parte – “Sobreviver e Regressar”

Depois de ter permanecido em Maputo (Lourenço Marques à época) por algum tempo, fui chamado finalmente para norte, para substituir um operador cripto que terminara a comissão.

Embarquei num voo que me levou até a um dado acesso da ferrovia, para prosseguir a viagem de comboio, e finalmente numa viatura do exército até ao meu destino.

Juntei-me a um Batalhão de Caçadores, a uma determinada Companhia de Caçadores.
Nomes de locais como a Beira, Muembe, Chiconono, Vila Cabral (atualmente Lichinga) e Luatize passaram a fazer parte para sempre das minhas memórias. Alguns deles denominam mesmo as picadas por onde andei, e onde tive a sorte de sobreviver.

Nem sempre era assim…Algumas picadas eram a morte de muitos…
Muito para além da guerra, a cada contacto com os meus camaradas de armas e com a população local, aprendi a viver num novo ritmo.

Sempre que pude, ignorei tudo o que era mau, por entre a saudade e a boa lembrança dos meus em Lisboa, os meus camaradas, e as vivências locais ao som da África genuína, da África pura das gentes de lá, o coração da terra, em melodias lentas e calorosas dos nativos que connosco riam e que connosco trocavam saberes. Gente simples, de caloroso afeto e riso contagiante.

Durante alguns meses vivi junto da população local de um povoado, onde me dediquei à alfabetização das crianças nativas, leitura, escrita e cálculo. Também dediquei parte do meu tempo a treinar a equipa local, no meu desporto de eleição – o futebol.
O tempo livre era bastante, e nesta fase a missão era sobretudo ocupar a área e defendê-la de possíveis ataques.
Era para isso que nos tinham enviado, e todos nós, mesmo os muitos que ali estavam obrigados pelo Regime, independentemente das nossas posições pessoais, ou da falta delas, cumpríamos com zelo o que nos ordenavam, sem questionar.

Depois chegou o tempo da outra fase da missão. O tempo das trevas, em que descemos ao inferno tantas vezes e nos perdemos de nós… Alguns perderam ali a vida.
Num dia tórrido e húmido de Agosto sofremos o primeiro ataque à base onde estávamos.
Deixou marcas incontornáveis, embora não tenhamos tido baixas, inacreditavelmente.
Os sons das rajadas… o rolar característico das granadas antes de rebentarem, mesmo junto a nós…
Seguiram-se outros ataques bem mais sangrentos, com feridos graves, mortos…
Memórias tristes e marcantes, que fiz por esquecer para sempre…
Por questões de segurança mudámos de localização duas vezes..
Numa dessa mudanças fomos para Luatize…
Apesar do perigo sempre presente, a picada Vila Cabral-Luatize não correu mal.
Havia picadas que matavam quase todos os que as faziam…
Não foi, felizmente, o nosso caso.

Depois, rapidamente nos habituámos à vida nas precárias instalações que nos estavam reservadas e que se encontravam estrategicamente perdidas no meio do nada.
Nas proximidades passava o rio Lugenda, um dos afluentes do grandioso rio Rovuma, e era um afluente do rio Lugenda, o rio Luatize, o rio onde nos refrescávamos.
Naquela altura do ano e naquela zona da sua passagem, o Luatize tinha fortes correntes e algum caudal, e era junto dele que descontraíamos com alguma frequência.

O humor, ainda assim, imperava entre nós, nos dias distantes dos ataques, e era a forma que tínhamos de sobreviver a tudo aquilo.
As cartas que escrevíamos para os nossos, as conversas soltas e a leitura, jogar, nadar, tirar fotografias para levar para casa, enfim, tudo servia para afastar medos e dores demasiado duros e reais, e renovar a esperança de que um dia iríamos regressar e retomar as nossas vidas onde as tínhamos interrompido.
Éramos essencialmente uns putos… Uns putos recrutados para a guerra, transformados em jovens valentes, para que lhes fosse possível sobreviver nas mais terríveis condições.
Uns rapazolas que se esforçavam por ir vivendo um dia de cada vez, convivendo com os perigos daquela região, de extrema riqueza em fauna e flora, mas onde as doenças e os perigos existiam a cada passo que se dava.

O terreno minado de Moçambique, os ataques e as emboscadas, não eram os únicos perigos que enfrentávamos – eram seguramente os maiores -, haviam mais perigos, os perigos naturais da região, muito diferente de Portugal continental, e que se tornavam muito presentes no mato, nas condições terríveis a que estávamos sujeitos.
Fiz questão que a beleza e a força daquela paisagem húmida e quente fizesse parte das minhas memórias de guerra.

Infelizmente não pude evitar que também das minhas memórias fizessem parte os ataques de que fomos alvo, durante os cerca de dois anos da minha comissão.
Escondia agora memórias profundas, memórias de África e da guerra, nem sempre as melhores…
Mas esforcei-me sempre por esquecer o pior do que ali vivenciei, e nunca me esqueci de agradecer por ter podido regressar com vida, e de prestar homenagem a todos os que lamentavelmente não conseguiram voltar, e às vítimas da guerra, todas elas.

Fisicamente não tive ferimentos de relevo. Adoeci por duas vezes, uma com direito a internamento durante algum tempo. Mas nada de mais.
Depois disso, no entanto, e ao regressar a Luatize, deixou de ser possível continuar ali. As parcas condições higiénico-sanitárias e as da própria confeção dos alimentos tornaram-se incompatíveis com o meu estado de saúde, ainda em convalescença.

Faltavam três meses para findar a comissão e passei-os, por indicação médica, em Lichinga (Vila Cabral).
Luatize ficava para trás e com ele meses e meses de sobrevivência no meio do nada…
O jovem rapaz que chegara vinte e sete meses antes a solo moçambicano jamais iria ser quem tinha sido antes da guerra.

Há uma espécie de inocência perdida pela guerra.
Por entre dores e horrores, indescritíveis, a guerra muda-nos inexoravelmente.
A alguns destrói a fé e a esperança na humanidade. Noutros robustece-a.
Numa manhã de domingo, chegou finalmente a mensagem codificada pela qual eu mais aguardava…

Desta vez não fui eu a descodificá-la, mas um colega, e quando a trouxe até mim, o meu coração encheu-se de alegria e os olhos brilharam de um contentamento indescritível.
Chegara a minha vez de regressar a casa! Que alegria imensa!…
De Lichinga (Vila cabral na altura) parti para a Beira, onde iria embarcar num voo programado, da Força Aérea Portuguesa, rumo a Lisboa.
Mais de dois anos haviam passado e iria voltar a casa, vivo, sem danos físicos ou psíquicos graves.
Alguns sonhos não puderam ser retomados. A vida não pára e existem oportunidades que se perdem para sempre.

Mas fui muito afortunado e abençoado, como muitos outros, felizmente.
Pude ter um futuro. E agradeci por ele todos os dias.
Nunca esqueci também que, infelizmente, houve muitos que não voltaram. Muitos perderam a vida.
Também nunca esqueci que, dentre os que voltaram vivos, muitos ficaram para sempre deficientes motores e/ou psico-motores…

Outros regressaram a casa com patologias graves, psiquiátricas e psicológicas, desmandos de conduta, alcoolismo, dentre uma panóplia de situações de stress pós-traumático de guerra, etc.
Muitos destes não puderam voltar a ter uma vida normal, ou voltar a trabalhar, ficando a depender de miseráveis reformas de invalidez até ao resto dos seus dias. Reformas que mal lhes deram, ou lhes dão, para pagar medicamentos ou tratamentos, muito menos para pagar uma casa e alimentação.
Alguns foram internados em hospitais psiquiátricos, em internamentos de longa duração, sem condições para voltarem a ser integrados e inseridos na sociedade com autonomia…
Mágoas de toda uma geração de jovens e das suas famílias, vítimas, todos eles inocentes também, de uma guerra que não escolheram, de uma obrigação a que não puderam escapar.
Eu, como outros, tive sorte.

A experiência de África e da guerra deixava mágoas escondidas, mas também muitos momentos que fiz questão que tivessem um colorido de menor tristeza dentro de mim.
Nunca falei muito da guerra, pelo menos não da parte que fiz por esquecer.
África passou a ser uma parte do meu passado, e do nosso passado coletivo, com o tempo, cada vez mais distante.
Mas por vezes, de noite, num pesadelo que se tornava real, ainda lá estava…
Memórias silenciosas de dores que morrem connosco.

NOTA DA AUTORA:
1.Os Diários da Guerra Colonial (1ª, 2ª e 3ª Parte), fazem parte de uma história ficcional, recriada pela autora, inspirada em factos reais e verdadeiros, alguns de conhecimento público que são referenciados como informação impessoal e não particular, e outros factos ocorridos mas recriados, em que se omitem ou mesmo se alteram datas, locais e os próprios acontecimentos, deliberadamente.
Sendo uma história de ficção inspirada em factos verídicos, poderão existir relatos que sejam similares a muitas experiências pessoais, sendo isso no entanto apenas uma coincidência, derivada dos muitos pontos que poderão existir em comum, em muitas histórias desta altura. Esta é uma obra de ficção, inspirada em factos verídicos.
Ressalva-se que mesmo a personagem da história, o soldado/narrador, apesar de inspirado numa figura real, não obedece no entanto a uma lógica puramente biográfica, sendo a própria personagem e os seus relatos/pensamentos/sentimentos uma criação literária da autora, da sua inteira responsabilidade e interpretação, não retratando sempre, nem necessariamente, valores/pensamentos/eventos reais da figura real em que se inspirou.
A autora dedica este conjunto de três crónicas ao seu saudoso e falecido pai, fonte da sua inspiração, e a todos os jovens recrutados para a guerra colonial e suas famílias, bem como a todas as vítimas da guerra colonial a quem se presta a mais honrosa homenagem.
2. Imagem – Foto particular – Rio Luatize/Ponte (1973)