A Dimensão Cultural dos Actos Terroristas de Paris

Os recentes atentados de Paris apanharam-nos de surpresa e deixaram um rasto de choque e consternação. Sejamos portugueses, espanhóis, chilenos ou australianos é impossível não estarmos solidários com a população francesa e não temer o alvo gigantesco que o ISIS colocou nas nossas costas. Todos podemos ser alvos. Ou melhor, já podíamos, mas tínhamo-nos esquecido dessa sensação. Os ataques de Paris serviram precisamente para avivar a nossa memória. Mas estes ataques foram muito mais do que isso. Foram também uma investida contra a cultura francesa, e contra a cultura europeia. E é precisamente essa dimensão cultural que vai dominar o “Desnecessariamente Complicado” desta semana.

O problema da Síria é, acima de tudo, político. Agora é também militar, é um facto, mas na sua origem é um problema político. E, tal como todos os problemas, como não foi resolvido teve consequências ainda piores. Sim, algo tem de ser feito mas….o quê? Devemos encorajar ainda mais bombardeamentos tentando cortar o mal pela raiz ou aceitar de ânimo leve esta “cultura do medo” que os terroristas nos estão a tentar impor? Infelizmente a vida real não funciona da mesma forma que um concurso de cultura geral do prime-time televisivo, como tal não existe uma resposta correcta e uma resposta errada para esta pergunta.

De todos os comentadores que vi na televisão, que li nos jornais e na internet ou que ouvi na rádio apenas um (apenas um…dos que vi/li/ouvi, evidentemente!) ousou dizer o seguinte: “para mim estes ataques significam algo muito simples…desespero. Sim, porque a verdade é que os terroristas estão a perder a guerra, logo isto foi uma jogada de aflição. É que os terroristas sabem que se nos atacarem directamente, através de bombistas suicidas como foi o caso de Paris, vão obrigar-nos a recuar e vão espalhar o medo. A seguir poderemos atacar mais, e com mais força e determinação, mas pelo menos momentaneamente vão levar-nos a recuar”. Infelizmente não tomei nota do nome do referido comentador, contudo admito que concordo com ele. Eram vários os meios de comunicação que davam conta dos ataques aéreos russos na Síria, certo? Certo. E quantos davam conta das respostas do ISIS ou das baixas que provocavam nas tropas russas? Pois…na guerra, como nas redes sociais, o que importa são as aparências. E o que estes ataques trouxeram foi o ISIS de novo para a frente desta guerra, pelo menos aos olhos da população mundial.

E já analisaram os locais escolhidos para os ataques? Não? Eu ajudo: um estádio de futebol, um teatro e vários locais públicos de convívio. Ou seja? Locais emblemáticos de Paris, e consequentemente de França, mas acima de tudo da cultura europeia. Aquilo que diferencia os franceses, os alemães ou os eslovenos dos angolanos, dos sírios ou dos marroquinos é a cultura que possuem. Claro que esta é, principalmente, uma guerra religiosa. Mas também é uma guerra cultural, e era isso que o ISIS queria provar no passado dia treze de Novembro.

Paris
A multidão que assistia ao amigável França – Alemanha procurou abrigo no centro do relvado

O Estádio de França é, indiscutivelmente, um dos maiores palcos futebolísticos em todo o continente europeu. É um estádio com uma história riquíssima e tem a sua dose de feitos épicos e inesquecíveis. O jogo da passada sexta-feira até era apenas amigável, mas não tinha de ser importante para o ataque ter impacto. E, mesmo assim, Paris ainda teve uma boa dose de sorte. É que um dos bombistas que se fez explodir nas imediações do estádio tinha, segundo conta a imprensa, bilhete para o jogo em causa. Mais: não só tinha bilhete para o jogo como tentou entrar no estádio! Felizmente o colete onde transportava os explosivos foi detectado à entrada. Com medo de ser apanhado recuou uns metros e fez-se explodir. Daí resultaram alguns feridos (e penso que mortos também, mas sem certeza, admito), mas salvaram-se milhares de vidas que se encontravam no interior do recinto. E querem saber a melhor parte? Consta que o segurança que descobriu o bombista é….Muçulmano! Não é a derradeira ironia do destino? Ah e antes que perguntem: parece que o segurança conseguiu escapar à explosão apenas com alguns ferimentos de pouca gravidade.

Mas ainda existe um outro raciocínio que tem de ser feito a propósito deste ataque ao Estádio de França. É que no verão de 2016 França irá receber o Europeu de Futebol. Ou seja, as melhores selecções europeias estarão, em peso, um pouco por todo o país. E, atrás dos jogadores e equipas técnicas vão, como toda a gente sabe, os políticos mais importantes de cada país e da União Europeia assim como muitos cidadãos comuns que apenas querem assistir a bom futebol. Isto sem mencionar todos os outros países a nível mundial que se farão representar e a imprensa a nível mundial. Dito isto: ainda existem dúvidas de que aquele ataque específico era um aviso para 2016? Até que ponto não assistiremos a recusas de jogadores/técnicos em estar presente nesta competição? Não seria legítimo recusar ir alegando não estarem reunidas as condições de segurança necessárias?

Um dos restantes ataques foi no teatro Bataclan. O espaço, construído em 1864, recebia naquela noite um concerto dos norte-americanos Eagles of Death Metal quando quatro indivíduos armados começaram a disparar indiscriminadamente sobre a multidão. Das mais de 1300 pessoas que se encontravam no espaço cerca de 100 foram feitas reféns. Dessas, estima-se que 80 terão perdido a vida a sangue frio, sem dó nem piedade. Dos quatro terroristas que invadiram o Bataclan três accionaram o colete de explosivos que carregavam consigo, enquanto que o quarto foi morto pela política francesa. Apesar do elevado número de mortos a verdade é que a maioria dos espectadores do concerto conseguiu abandonar a sala. Sim, muitos saíram feridos, mas ao menos sobreviveram para contar a história.

Paris
O interior do Teatro Bataclan, em Paris

Para mim também este ataque foi cultural. Escolheram um local emblemático da cena cultural parisiense, absolutamente esgotado para ver e ouvir uma banda norte-americana. Tudo isto é tão simbólico que quase que fala por si. Pena é que uma parte dos jornalistas, e da população em geral, desconheçam (ou se informem tão mal) a respeito da banda em questão. A sucessão de erros foi tão escandalosa que se tornou ridícula: desde serem uma banda de heavy metal (que não são, só para que conste) até serem uma banda metal de covers dos Eagles (que também não são, já agora) valeu tudo na imprensa e na internet. O melhor equívoco terá sido aquele que afirmava que a banda era, nada mais nada menos que….os próprios Eagles. Não é hilariante tanta parvoíce junta?

Outros dos alvos foram cafés/restaurantes. Dezenas de pessoas estavam pacatamente sentadas em esplanadas quando saraivadas de tiros as feriram (em alguns casos mortalmente). Esta é, quanto a mim, a derradeira prova da vertente cultural destes ataques. Porquê? Porque boa parte da vida social parisiense reside, precisamente, nos cafés, nos restaurantes, nos clubes, nos teatros e nas esplanadas que quase todos têm. Um ataque destes vai, certamente, afastar milhares de pessoas dos espaços públicos e culturais nos próximos tempos. Sim, porque será impossível estar numa praça, num café ou num concerto em Paris sem temer ser alvo de um ataque terrorista.

Fotografia tirada nos momentos imediatamente a seguir a um dos tiroteios na capital francesa
Os momentos imediatamente a seguir a um dos tiroteios na capital francesa

Concentremo-nos agora numa outra vertente desta problemática: os refugiados. Uma das informações que veio a público, pouco tempo, depois dos ataques terroristas revelou que junto aos restos mortais de um dos bombistas estava um passaporte. Aí constava não só a identidade do membro do ISIS como também um dado curioso: aquele terrorista tinha entrado na Europa fazendo-se passar por refugiado, na Grécia. Ou seja? Muito boa gente teve a prova que lhe faltava para se afirmar contra a entrada dos refugiados na Europa.

Agora pergunto eu: porque raio teria o bombista levado consigo o passaporte? Senão reparem: ele sabe que vai morrer (logo não podia ser para fugir a seguir ao atentado) e quer tudo menos ser apanhado e descoberto (e o passaporte contém, recordo, todas as informações a seu respeito). Por isso, repito: que lógica tem ele ter consigo o passaporte? Mas ainda vou mais longe: portanto ele explode, fica transformado em milhares de pequenos pedaços, mas o passaporte é encontrado ao seu lado, intacto, é isso? Têm razão, faz todo o sentido….só que não! Parece-me óbvio que o objectivo era, precisamente, equivocar os investigadores e criar ainda mais desconfiança na Europa para com os refugiados. E, infelizmente, boa parte das pessoas caíram na esparrela.

Como é que é possível que uma parte tão alargada da população europeia não perceba que os refugiados fogem…precisamente de atentados como os de sexta-feira? Para os sírios Paris acontece todos os dias. Claro que por entre tantos milhares de pessoas nem todas têm boas intenções. Isso é óbvio para qualquer um de nós. Nem todos serão boas pessoas e bons cidadãos, mas também tenho a certeza que não são todos familiares do bicho papão ou terroristas sem escrúpulos. Não existem bons e maus alemães, suíços ou belgas? E o que fazemos aos maus cidadãos? Investigamos, prendemos e levamos a tribunal aguardando a sentença. E porque não podemos fazer o mesmo aos refugiados? Porque têm eles de ser cidadãos “modelo”, absolutamente perfeitos e imaculados se nós próprios não o somos? Não estaremos a ser demasiado hipócritas?

Retomo agora as questões que coloquei quase no início desta crónica. Afinal de contas qual a solução para um problema destas dimensões? É que bombardear não só custa muito dinheiro como ainda por cima mata muitos inocentes pelo caminho. E, se querem que seja sincero, não me parece que isto vá lá com rezas. Sabem porquê? Porque do ponto de vista dos terroristas parte do problema reside, exactamente, no facto de rezarmos. Calma, não no acto de rezar, mas na entidade divina à qual rezamos. Ou seja, rezar pode ser tão ofensivo quanto lançar uma bomba.

Paris
A prova da união, e da comoção colectiva, junto a um dos locais onde decorreu um tiroteio na passada sexta-feira, em França

Infelizmente não me parece que os ataques de Paris sejam um caso isolado. O ISIS continuará a tentar impor a “cultura do medo” um pouco por toda a Europa. A nós, portugueses e cidadãos europeus, cabe-nos reafirmar os nossos ideais e as nossas convicções. Ceder ao medo e deixar de ir a concertos é dar-lhes o sabor da vitória. Deixarmos de frequentar as esplanadas e os restaurantes é como que legitimar as suas acusações. Passarmos a fazer do sofá da sala a nossa bancada para ver um bom jogo de futebol é dar-lhes ainda mais poder. E os terroristas precisam de muita coisa, mas mais poder não é uma delas.

Termino esta crónica com uma nota de pesar, e respeito, para com as vítimas destes atentados. Por piores pessoas que fossem nunca mereceriam uma morte destas e a estas mãos. Para elas vai o meu respeito e as minhas preces. Para as respectivas famílias endereço as minhas condolências e uma mensagem de esperança, e força, num futuro melhor. E num futuro melhor certamente que não há espaço para o terrorismo.

Boas leituras.
Boa semana.