A minha escola primária sabia a pão com geleia…
Chovia sempre muito…
A minha escola primária era o Júlio a comer iogurte, era a letra bonita do Chita, era o cabelo loiro da Sabrina, era eu, de calças de bombazina castanhas com remendos nos joelhos e um capote alentejano, que mantinha a temperatura do meu corpo a uns fresquinhos seiscentos e setenta e sete graus.
A minha escola primária era um campo de terra batida onde se jogava ao berlinde. Era um autódromo onde se faziam grande prémios do Mónaco em pistas desenhadas a giz e em que todos fazíamos as curvas sem reduzir.
Era uma baliza de duas pedras, com uma linha de golo imaginária, onde eu tentava imitar o Vítor Baía, voando sobre o céu de Rio Tinto, acabando, sempre, por aterrar de emergência na lama e reduzir a já de si curta esperança de vida dos meus dentes de leite.
A minha escola primária era eu, trapalhão, a picotar e a recortar por fora e a produzir estalactites de cola UHU, que iam do meu polegar ao meu indicador, passando pelos outros dedos todos.
A minha escola primária era eu, daltónico, a pintar a bandeira de Portugal com guache castanho.
Era eu, intrujão, a dizer à professora que não tinha feito os deveres porque no dia anterior tinha tido uma dor forte nos dentes do siso. Às vezes também dizia que me tinha cortado a desfazer a barba.
Ela, claro, perguntava-me se eu estava melhor.
A minha escola primária eram sebentas, filas de quês de quaquá, ésses de sapo e pês de pato.
Na minha escola primária rezávamos o Pai Nosso. Todos! Até os que achavam que Ele não estava no céu.
Pedíamos para Ele nos perdoar pelas nossas ofensas e, a seguir, com o livro aberto, continuávamos a ler coisas católicas. O Papá papa o pipi da titi!, por exemplo!
Na minha escola primária não havia mimo. Os grandes tinham a mania da perfeição. Para que nada saísse da linha, usavam réguas. Que sabiam ler a sina.
Ninguém conhece as rotundas, as cedências de passagem e as bifurcações das linhas contínuas da minha mão, como a régua da minha escola primária.
Eu não sei se fui feliz na minha escola primária. Se fui, a culpa é do Júlio, do Chita, da Sabrina, da Liliana, da Joana, da Olga, da Dulce…e esses, por mais que cresçam, que usem barba, pera ou suíças, na minha cabeça vão estar sempre lambuzados e besuntados de cornetto de chocolate, a brincar aos legos, a mexer em plasticina, a jogar ao mata e ao um dois três macaquinho chinês. A minha escola primária, infelizmente, foram só eles. Que eram tanto!
O resto foi asma. Sufeca, como se diz aqui.
Sim, nunca me esqueci da tabuada, sei de cor a sequência dos reis e o nome dos tratados, sei que não se diz “tu há-des aprender, ouvistes, meu estapor. A gente os dois fala quando chegar-mos a casa”, sei que existem gados caprinos e asininos, sei fazer a prova dos nove, sei que os de Castela eram maus como as cobras e sei que, no Algarve, a temperatura é relativamente mais quente do que na Serra da Estrela.
Porreiro! Para ter sido mesmo brilhante, faltou-me ter decorado o décimo sétimo apeadeiro da linha do Tua, a contar desde a Ucanha.
A minha escola primária gostava de estar com as persianas das janelas fechadas. Às escondidas, nós, os pequeninos, abríamos as frinchas, empoleirados uns nos outros. Lá fora, o mundo!
Bofetadas, reguadas, sapatadas, fila dos bons, fila dos “mais ou menos” e fila da “miséria”. Cópias, ditados, contas, Avé Maria cheia de graça, outra cópia e outra bofetada, uma reguada por escrever “Pai Noço”, um puxão de orelhas e respectivo arregalar de olhos porque leio mal a palavra “cágado” e transformo a pobre tartaruga num adjectivo sem hábitos higiénicos.
Um berro de megafone a dois centímetros do meu ouvido e sou o epicentro do meu próprio sismo. Um maremoto de perdigotos, também. Tremo em cima do estrado, apesar do calor. Só não urino porque era o melhor da turma a controlar os esfíncteres…
Tudo porque a “perninha” do “d” estava zero vírgula quatro decímetros abaixo da linha. É compreensível!
Sou despromovido.Despeço-me da fila dos “mais ou menos” e desço, num escorregão em espiral, à fila da “miséria”. A fila dos depositados, dos feios, do ranho no nariz, dos maus. Como eu! Como eu me senti!
Atenção.
Há um motim surdo naquela fila. Limpamos o nariz com o braço. Costas direitas. Peito feito. Somos uma seita de meninos pequeninos a entrar em erupção.
A revolução começa.
Toca a fazer o teste com caneta de filtro verde-fluorescente.
Sem querer, por não saber as cores, faço o teste a violeta-escuro. Não faz mal. Não traio a revolução. Os camaradas conhecem-me!
É Carnaval. Há um que vai de Robin dos Bosques. A professora diz que estão todos muito bonitos. Menos o Robin. O preferido dela era um que ia de metralha! As metáforas são o melhor da vida…
Aos meus amigos pequeninos, e só a eles, o meu obrigado pelo pão com geleia!
Crónica de João Nogueira
Pés bem assentes na lua
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Muito bom!!! Fez-me lembrar da minha primária…
Clap, clap, clap…
Bruno, muito obrigado! Um grande abraço!
Parabéns João!
Mais uma vez “pintou” um quadro belíssimo!
Revivi muitas das expressões que usou, um texto tão verdadeiro que até me pareceu ouvir a voz do “meu estapor”.
MD
Muito obrigado, Manuela! 🙂 Ainda bem que gostou 🙂