“Está?…Sou eu a Maria, preciso de ajuda” – Quando se diz “Não” à violência doméstica

Era muito jovem ainda, mas já tinha terminado a sua licenciatura, e apaixonou-se…
Assim, de repente, enamorada, acabou por ir viver com aquele que considerava o homem certo.
Passado algum tempo casaram.

Por vezes discutiam, mas Maria, que era assistente social e muito habituada a lidar com os casos complicados da violência doméstica, não achava nada relevante estas pequenas discussões.
Considerava absolutamente normal os casais discutirem, e ainda que por vezes fosse chamada de nomes consideravelmente depreciativos, e mesmo nomes daqueles bem impróprios e que a magoavam profundamente, não dava grande relevância ao facto…

Afinal todas as pessoas se zangam e chamam nomes quando isso acontece…
A violência doméstica, achava ela, acontecia em terrenos de extremos sociais – os de baixo estrato sócio-económico, que era aquilo que via e acompanhava no dia a dia, bairros considerados problemáticos, ou então, aqueles estratos sócio-económicos muito elevados, em que o filme que há muito tempo vira “Dormindo com o Inimigo”, com a atriz Julia Roberts, tão bem havia retratado.
Homens violentos. Mulheres dependentes, submissas, com um determinado padrão comportamental…
Nunca na vida tivera esses problemas, nem convivera de perto com eles a não ser no seu trabalho.
Sempre tinha sido equilibrada também.

Os nomes que ouvia serem-lhe chamados de quando em vez, começaram a tornar-se mais frequentes…
Começou a ficar incomodada com isso, mas sem querer ligar muita importância…
Depois começaram as rotinas quebradas no quotidiano.
Ficava preocupada porque ele não chegava a casa à hora combinada, depois percebia que ele ia até a um qualquer café com amigos, onde jogava e se distraia, bebendo uns copos.
Nada de mais, achava ela.

Mas começou a ser demais. E ela, preocupada e por não gostar nada deste volte face na sua vida de casal, começou a levantar questões e problemas quando ele chegava.
Começou também a ficar bloqueada em termos de afetos e ainda mais de sensatez.
Não se apercebia do que se passava. Arrastava-se para o trabalho, e tudo lhe parecia um esforço imenso… Estava a começar a ficar deprimida…mas não percebia…
Entretanto, em casa muito se complicavam as coisas… Quando ele chegava, e ela levantava problemas, ele humilhava-a cada vez mais, passou dos nomes feios, ao ato de atirar objetos contra paredes, chão… E ela, furiosa e perdendo-se de si – sim porque ela não tinha perfil de vítima (achava ela), e portanto ripostava já as agressões e ofensas psicológicas… – atirava também com a porta, acusava-o de tudo o que lhe passava pela cabeça, provocando a ira acesa que a atingia no fundo das suas entranhas.
Quase sem dar por isso, começou a ficar mais fechada dentro de si, da sua concha…
A infelicidade em que vivia reduzia o seu mundo aquele lar desfeito e onde a paz já há muito não existia.
Um dia, ele chegou mais azedo ainda do que era hábito, antevendo que Maria faria uma das suas cenas de sempre (pensamento dele, claro) e que o ia chatear.

Nesse dia Maria realmente irritou-se. Ele não tinha atendido o telefone, e tinha-se esquecido que havia combinado com ela passar no supermercado antes de ir para casa.
Não tinham preparado nada para o jantar, e Maria estava aborrecida e cansada.
Furiosa, sai de casa e vai ao pronto-a-comer mais próximo comprar qualquer coisa.
Quando chega o conflito aumenta de tom, e é então que ele se exalta mais e lhe dá o primeiro estalo dos muitos que se seguiriam a partir deste, numa escalada de violência que só poderia prosseguir e aumentar de tom.

Um outro dia pegou nela e atirou-a contra a parede. O aro do soutien marcou-a no peito com o puxão que lhe foi dado para depois a empurrar…
Protegeu a cabeça, mas bateu com o corpo contra um bengaleiro que havia na sala, caindo no chão, amparada.

Nesse dia ele saiu para passar a noite fora dali.
Maria absolutamente destruída, e ao contrário do que era hábito, não atendeu os sucessivos telefonemas de desculpa, nem respondeu às mensagens.
Dormiu, com a chave por dentro da porta na certeza de que ele não iria entrar durante a noite.
Na manhã seguinte viu o vergão da marca do aro do soutien, a negra no peito, nas costas, equimoses sem relevo, pensou ela…
Foi trabalhar.

Durante o dia, uma colega chegou ao pé dela perguntando se estava tudo bem…achava-a mais magra, cansada, com pouca energia, e sentia-lhe o olhar vivo bem mais apagado desde há uns meses.
Maria sorriu, dizendo simplesmente que andava a precisar de férias. Sem mais.
Voltou para casa. Desculpado estava o seu companheiro, após as muitas desculpas, o ramo de flores e a jura de que não voltaria a acontecer. Mas voltou a acontecer, claro.
Os dias e os meses repetiam a mesma sequência. Passou a ser hábito a violência física acompanhar a psicológica…
Maria não pedia ajuda, e cada vez se afundava mais numa relação onde era maltratada e se sentia cada vez mais vazia de si, para além das dores físicas, graves, também as psicológicas eram cada vez mais profundas e intensas.
Com o tempo, alguns amigos e colegas, começaram a notar os pequenos acidentes que iam acontecendo a Maria…
A versão de Maria era a de estar cansada, sempre, de fazer “negras” com facilidade, de bater num vértice do armário, cair numa escada, escorregar e bater com a cabeça, enfim…um sem número de situações para esconder o que era óbvio.
Maria não daria conta que apenas num ano, a pessoa que era deixara de existir…
Muitas desculpas, muitos recomeços, muita chantagem, e plena falta de amor próprio, conduziam Maria a ser vítima de violência doméstica, sem que ela mesma fizesse o que quer que fosse para sair da vida miserável onde se encontrava.
Um dia, Maria estava no trabalho e tomou conhecimento de um caso que havia acompanhado e que terminava mal.

Anita, uma mulher culta e agradável, que tinha passado por ali por uma queixa por parte da sua médica, porque havia feito uma fractura óssea num dos braços, com necessidade de cirurgia, depois de ser atirada contra um móvel pelo seu companheiro – também muito culto por sinal, e de agradável trato-, tinha morrido.
Morreu Anita, após ter feito as chamadas “pazes” com o seu companheiro, e de terem ambos deixado este serviço.
Anita decidira ficar em casa, retomar a relação mais uma vez, garantindo que seria a última vez que daria uma oportunidade ao seu companheiro de muitos anos.
Anita não sabia, mas seria realmente a sua última oportunidade de viver…
Anita preferiu acreditar. E com essa crença assinou a sua sentença de morte às mãos de um homem violento, cuja ira dominava o seu Eu demasiadas vezes.
Anita morreu porque em mais uma discussão, ele a atirou com demasiada força, e Anita caíu mal, como se diz…Caíu e morreu.
O seu companheiro atónito, nem acreditava no que acabara de acontecer…
Maria também não.

Nesse dia Maria foi para a casa de banho do local de trabalho e chorou. Chorou muito.
Sentou-se no chão, agarrada aos joelhos, e chorou muito, soluçando…
Levantou-se e olhou-se ao espelho, passado uns minutos.
Subiu um pouco a camisola que trazia vestida e viu a zona do seu ventre liso e perfeito, com duas marcas amareladas, e uma, do outro lado, bem negra.
Depois não quis ver mais nada…
Lavou o rosto.
Quando saíu uma amiga encontrou-a no corredor e interpelou-a.
Convidou-a para beberem um café no bar do hospital.
Desceram e a colega foi-lhe falando da música muito interessante “LuKa”, de Suzanne Vega, apontando o facto de ser uma música que relata a violência doméstica e o quanto estas mulheres ficam sós e desprotegidas, isoladas, e pior que tudo, frequentemente, em negação.
Maria olhou-a por uns instantes fixamente. Sabia que aquela colega, psicóloga, não poderia estar a falar por acaso da música… Talvez a tivesse ouvido no corredor do WC do Serviço.
A colega olhou-a em silêncio.
Disse-lhe:
– Sabes, quando estamos absolutamente perdidos na vida, metidos em algo que não sabemos como sair, que nos esvaziou por dentro, já não se fala de amor, nem de relação, trata-se da vida que nos roubam, irremediavelmente se persistirmos no erro de ali estar.
Pedir ajuda é essencial, e sair, no decurso do processo do alcance de quem nos meteu no horror em que nos encontramos.
Sair da situação, é o passo mais importante. Mesmo que depois se recupera a casa ou os bens, o que é um facto se se trata de violência doméstica.
Ela não acontece só às outras…
A Anita perdeu a vida porque deu uma última oportunidade. Nunca sabemos quando vai ser fatal.
Uma opção errada e pode ser a última opção que tomamos, para sempre.
Maria olhou-a por uns instantes de lágrimas nos olhos…
– Vamos beber um café então? – perguntou.
– Claro. Vamos.
Depois do café, Maria voltou ao seu gabinete no Hospital. Ligou para a extensão da colega.
– Está?…Sou eu a Maria, preciso de ajuda.
Sabes de algum número, fora daqui do nosso Serviço, para onde possa ligar e pedir apoio e encaminhamento urgente?…
– Sim, claro – deu-lhe os números de uma Associação de apoio – Sabes que estou aqui, a qualquer hora… Precisas de mais alguma coisa?… Podes ficar lá em casa se precisares. Sabes que podes contar comigo…
– Sim, sei – disse baixinho Maria desligando sem quase se ouvir um tímido obrigada da sua boca.
Nesse dia Maria não voltou a casa.
Foi para um “abrigo” de acolhimento temporário, onde viu mulheres como ela, outras com os seus filhos e as suas filhas, de idades muito diferentes entre si, todas com algo comum: vítimas de violência que decidiram salvar-se.
Ficou algumas noites por lá, até conseguir orientar as suas verbas para arrendar um quarto. Não queria ficar com ninguém conhecido. No local de trabalho foram avisados para não deixar entrar nem passar chamadas do seu companheiro.
Maria acabou por “dar a cara” e lutar pela vida, sem vergonha da sua situação (coisa que muitas vítimas têm, infelizmente, porque não têm de ter, obviamente!) e sem arrependimento por nunca mais voltar a dar um oportunidade à sua relação e ao seu agressor. Uma relação doente mas sem qualquer possibilidade de reparação. A violência doméstica contra a mulher não deixa espaço a reparação em relação. Só longe dela, para sempre. Maria decidiu bem.
Nesse dia Maria ganhou a sua própria vida e o seu futuro.
Muitas mulheres morrem às mãos dos seus companheiros após anos de agressão psicológica e física. Outras não morrem porque se salvam a tempo, mas ficam marcadas irreversivelmente para o resto das suas vidas.

Muitas crianças e jovens passam por este horror nas suas casas, muito mais tempo do que deviam.
Maria recuperou mais tarde a sua casa. Nunca voltou para lá.
Vendeu-a e procurou um lugar para viver longe daquelas horríveis memórias.
Foi apoiada por uma Associação competente que auxiliou e a retirou de casa na mesma noite em que pediu ajuda.
Maria tinha vergonha, tinha medo, tinha…muitos sentimentos contraditórios e ambivalentes que tomavam conta dela, deixava-se manipular…
Um dia, uma morte de uma mulher e as palavras de uma colega, fizeram-na confrontar-se consigo mesma.
Pediu ajuda, foi acompanhada psicologicamente, foi apoiada em grupos de ajuda mútua onde muitas mulheres que passaram pelo mesmo, de todos os estratos sociais, de todos os estratos culturais e económicos, em que o que as une é a vivência comum de terem sido maltratadas. Esta é uma ajuda preciosa na verdade.

Maria, a personagem principal desta pequena história ficcional, salvou-se. Foi salva.
A sua situação foi denunciada e encaminhada para as entidades competentes.
Maria conseguiu ter a coragem de dizer “basta!”, e ao mesmo tempo não ter de enfrentar o perigo dentro de casa no mesmo dia em que o disse, nem o perigo de ceder mais uma vez. Afastou-se, e com isso, e com essa proteção, conseguiu com clareza recuperar o discernimento e a força necessária para não voltar a cair no horror em que se havia transformado a sua vida.
Infelizmente a violência doméstica não é uma ficção. Ela é real e mata mulheres em todo o mundo.
Muitas mulheres em Portugal e no Mundo não se salvam.
Por trás da violência doméstica há toda uma cultura perversa de machismo e uma opressão pelo poder.
Mulheres fortes e cultas podem ser vítimas sim, como qualquer mulher.
A violência doméstica é sobretudo contra as mulheres e contra as crianças e jovens, e tem de ser urgentemente travada.

Temos o dever, todos e todas, de contribuir para que esta realidade não seja perpetuada.
A violência doméstica em Portugal não depende de queixa por parte da vítima, qualquer pessoa pode denunciar perante a evidência de que está perante uma situação de violência.
Para além da denúncia, as vítimas devem procurar ajuda especializada, apoio de Associações que as encaminhem e orientem, ao longo do processo. Este apoio e não correr riscos desnecessários de exposição ao agressor são aspetos essenciais a salvaguardar.
À Sociedade cabe ter “Tolerância Zero”, ou continuarão a perder-se vidas, de geração em geração…num ciclo perverso que não pára…
Urge por fim à violência.

NOTA DA AUTORA: Esta crónica é uma história de ficção, onde locais, nomes e acontecimentos são criados pela autora para este efeito.
Qualquer semelhança com factos reais é necessariamente uma coincidência.