A guerra das trincheiras foi há 100 anos

Era como se do silvo das balas, vindo de longe, é que eu tivesse medo e não de poder servir de alvo a uma, ao centro da testa, que me fizesse deixar de continuar a preferir escutar o estrondo das bombas caindo à distância de um campo de futebol da trincheira, ao invés do ressonar dos soldados que a dormir não paravam quietos, como se quisessem mostrar a quem os visse deitados uns sobre os outros que ao cabo de duas semanas na frente de batalha, e contra as previsões dadas à chegada, ainda se conservavam vivos.

A mim, o que conservava vivo era a esperança de, assim que fosse possível, regressar são e salvo a Portugal, de onde me arrependia de ter saído a bordo de um vapor britânico integrado na 1ª brigada do Corpo Expedicionário Português (CEP) para aquela que podia ser a minha última morada, na Flandres francesa.

Estávamos a 30 de Janeiro de 1917, e para ser sincero gostava de me ver de farda cinzenta e empunhando uma espingarda de caçar elefantes em África, armada de baioneta, sem pensar que podia não ser suficiente para me defender desse grande predador que é o homem.

Naquele momento, sem saber como descalçar o par de botas em que me encontrava, desviando a atenção das bombas com que os alemães ameaçavam a posição que defendíamos com unhas e dentes, olhava desolado para aquelas que enfiara nos pés. Há muito haviam começado a romper-se à frente, onde aparecia um dedo à espreita talvez da melhor oportunidade para fugir dali para fora. Também as calças e a jaqueta, à qual sem os botões dourados que lhe davam graça me apetecia chamar outro nome, estavam rasgadas e sujas, tão cobertas de pó de não tomar banho há vários dias que não seria pela cor do fardamento que um observador menos atento nos distinguiria, a mim e aos meus companheiros de armas, do inimigo.

Desde o assassinato do imperador austro-húngaro às mãos de uma fanático anarquista, 37 dias não haviam bastado às principais nações que se tornariam beligerantes, para chegarem a um entendimento que punisse o culpado e salvasse inúmeros inocentes de uma morte anunciada.

No dia 5 de Agosto de 1914, o sol iluminava o céu nos países da Europa central, e aos militares alemães, ao toque de alvorada, aquele deve ter soado a um dia tão perfeito como qualquer outro para iniciar uma guerra. Aquela que foi a 1ª Grande Guerra, ficou conhecida na Europa pelo rasto de destruição causado, até àquela altura sem precedentes, mas em Portugal deu que falar pela controvérsia que gerou o envio de um contingente de homens para terras gaulesas naquele que foi o esforço de guerra português contra um ditador, ao lado dos que defendiam os ideais da revolução, com quem formaram uma fação que só não era muito maior porque, aliciados por um salário milionário, alguns milicianos desertores foram ao engano de Portugal para combater pelas hostes contrárias.

Foi em 1917 que fomos postos à prova no campo de batalha, mas antes iniciámos uma preparação que nos levou a um mosteiro beneditino do século XVII onde ficámos aquartelados. Os portões abriram-se lentamente como se fossem empurrados por um monge em estado de penitência que não comesse há vários dias. Ao anúncio da sentinela, veio ao nosso encontro uma mulher muito bonita que era cidadã sérvia naturalizada francesa. Acercou-se de nós à cautela, como se à estirpe de homens valentes que representávamos, ela tomasse por espécimes raros de uma espécie que por aquelas paragens estava em vias de extinção, o que nos deixou imensamente contentes.

Agrupou-nos e após uma breve apresentação, levou-nos à presença do oficial de dia que era simultaneamente o elo de ligação ao General português no terreno que tendo sido um dos maiores impulsionadores da entrada de Portugal no conflito, tão satisfeito ficou com a declaração de guerra alemã em 9 de Março de 1916 como com o pedido formal de auxílio inglês, sem o qual o Governo português não teria justificação para a presença de navios de transporte britânicos no Tejo, nunca vistos em tão grande número desde a fuga precipitada da família real para o Brasil aquando da invasão do país pelas tropas napoleónicas.

Falou em Espanhol como se isso fosse natural num italiano filho de pai galego e mãe genovesa, que tinha a fama de ser a mulher mais bela de toda a região que se estendia para lá da Ligúria, à qual quando ele aportou não mais pensou em soltar amarras e concluir a viagem de circum-navegação percorrendo os sete mares, que terminaria quando entendesse que era chegada a hora de constituir a sua própria família.

Deve ter-se convencido de que faríamos o que estivesse ao nosso alcance para terminar rapidamente a guerra quando viu pela nossa cara que não estávamos dispostos a desperdiçar muito tempo das nossas vidas naquele lugarejo. Fez um discurso eloquente em nome daquele General cuja voz, embora falasse a nossa Língua, me soava mais distante, por ser um homem, na opinião de quem o conhecia, conflituoso e de trato difícil, agravado pelo facto de ouvir mal e tender a confundir o que lhe diziam.

Da veracidade da fama que o precedia nenhum de nós tinha motivos para duvidar. A nossa brigada do CEP não era constituída, na sua maioria, por militares de carreira, mas da curta passagem pela recruta ouvíramos falar dele como de um homem severo por quem ninguém nutria a simpatia necessária para lhe perdoar o defeito de ser arrogante.

Por não concordar com quase nenhum dos pontos de vista dele, comecei desde logo a antipatizar com o capitão que, pela pronúncia, tão certo como não ter uma costela alfacinha igual à minha, devia trazer um discurso como o que devem ter-lhe impingido quando o convenceram a trocar a pacatez da aldeia toscana onde vivia rodeado de cabras pela agitação do quartel, pondo de lado uma existência calma para combater numa guerra que ninguém podia prever quando e como iria terminar.

Era um homem novo mas tinha um ar desinteressante. Aparentava cansaço e exibia pesadas olheiras que deviam ser consistentes com as noites que passava em sobressalto sem dormir. Era mais alto e magro do que eu, o que fazia dele um ótimo alvo para atiradores menos experientes e de pontaria menos afinada que veriam redobradas as suas hipóteses de sucesso no caso de pretenderem alvejá-lo.

Em 48 horas deram-nos um curso de manuseamento de armas ligeiras e outro de introdução ao uso de baterias de artilharia pesada, com uma vertente prática onde aprendemos a escavar uma trincheira de metro e meio em menos de cinco minutos, no interior da qual, depois de devidamente consolidada com tábuas em toda a sua extensão para impedir o desmoronamento, corríamos a esconder-nos como se tivéssemos vergonha da obra que à pressa acabáramos de executar.

Depois do jantar e de termos recolhido das mãos da sérvio-francesa jeitosa um saco de lona com a nossa roupa de cama, dois lençóis e uma fronha embrulhada num pijama que não era à minha medida mas que servia para me proteger do frio que de noite fazia, deitámo-nos sobre a cama a descansar. Dormimos juntos essa noite, numa caserna apinhada de homens de todas as nacionalidades que noutra circunstância talvez nos recebessem friamente e olhassem com desconfiança receando a concorrência, mas que dado nos encontrarmos num barco à deriva que ameaçava naufragar nos acolheram calorosamente, certamente desejando que no lugar deles fôssemos mandados em primeiro lugar para as zonas da carnificina que distavam a pouco mais de meia centena de quilómetros dali.

Adormeci sem sono, como quem come sem saber se o que leva à boca é o pedaço de comida agarrado ao garfo ou outro que à força lhe enfiaram pela goela abaixo, e na manhã seguinte despertei ao toque de alvorada com a sensação pouco reconfortante de ter, logo às primeiras horas, caído da cama e passado o resto da noite deitado num colchão de pedra. Doíam-me as costas e os ombros como se tivesse adormecido num bote embalado pela maré e embatido violentamente num rochedo que o despedaçou, ou aterrado numa pedra mais pequena posta propositadamente à minha cabeceira para lhe dar com a com a cabeça.

Vesti-me sem demora e juntei-me aos meus companheiros de armas, à entrada do refeitório de portas abertas de onde vinha o cheiro adocicado de um pão em formato de bolo a que chamavam croissant e que voltei a comer uns anos mais tarde, em Portugal, numa confeitaria chique da baixa onde era bem recebido pelo dono que me tratava como a um herói da 1ª Grande Guerra, a quem dava eu o prazer de ter-me como cliente em troca de um café com adoçante que ele jamais me deixava pagar.

Foi a última refeição quente que me foi dado saborear nos tempos mais próximos, e logo em dose dupla a meu pedido, para que quando batesse a saudade ela ser maior por ter sido um pequeno-almoço substancialmente melhor em relação ao que estava habituado.

Dali a três horas iniciámos uma marcha que durou dois dias, munidos de todo o equipamento que era necessário para sobrevivermos na floresta até chegarmos ao nosso destino, e, uma vez lá, aos ataques do inimigo. Desta vez por via terrestre, em comum com a nossa viagem de barco a partir de Lisboa em que a tripulação era estrangeira, tínhamos o facto de ninguém perceber a nossa língua, daí que de nada adiantasse perguntar-lhes para onde íamos.

Formávamos um grupo compacto de cerca de 15 homens, sem contar com dois cozinheiros para improvisarem qualquer coisa para comermos; um jornalista foto-repórter de um periódico belga para registar in loco os acontecimentos; algum pessoal médico; e depois de ter aprendido na recruta como nos comportarmos diante do inimigo, um capelão para nos ensinar a estar diante de Deus no caso de sermos chamados à Sua presença.

Depois de um trajeto sem incidentes, ao cair da tarde chegámos a uma zona de mato cerrado onde mandaram que nos instalássemos. Todavia, era preciso erguer com a madeira que houvesse disponível, uma paliçada a toda a volta das tendas que nos salvaguardasse de alguma visita inesperada. A mim, doíam-me terrivelmente as costas e as pernas, por isso sentei-me e acendi um cigarro que me obrigaram a apagar com receio de na escuridão qualquer chama denunciar a nossa presença.

Por sermos inexperientes, estávamos tão nervosos que qualquer barulhinho nos punha de sobreaviso contra um inimigo que surgia, antes de o podermos ver, na nossa imaginação. Um adversário hostil e invisível que mesmo sem vermos não julgávamos ausente, causador do medo que obstava a que víssemos com clareza mesmo à luz do dia.

Finalmente, na manhã do terceiro dia, após uma breve preleção do nosso guia em que nos alertava para os animais com que podíamos vir a cruzar-nos, começámos a ouvir o estrépito de canhões. Ouviam-se explosões sucessivas, vindas do lado para onde estava virado o curso de um rio que bastava seguirmos para não corrermos o risco de nos enganarmos no caminho. O som das armas que ao princípio era diminuto, foi aumentando de volume à medida que nos aproximávamos em pezinhos de lã, mas deixando vincado um rasto para o caso de querermos voltar para trás pelo mesmo caminho. Foi quando um conjunto de homens a cavalo nos intercetou, pondo fim à dúvida de sabermos de que lado eles vinham a cavalgar, motivo pelo qual prontamente não recuámos e ficámos à espera, sem termos tempo para formar um quadrado ou, de qualquer outra forma, preparar a nossa defesa.

Por sorte, eram dos nossos, e assim evitou-se um confronto que seriam desastroso para os nossos homens, que armados de espingarda e baioneta para a luta corpo-a-corpo estavam em desvantagem contra a artilharia pesada que vínhamos ouvindo. Tratava-se do pelotão a cavalo comandado Tenente-Coronel Carlos Reis que estava encarregado de supervisionar o perímetro de segurança da zona das trincheiras, diante da qual, sem a sua proteção, avançavam apesar da oposição as tropas alemãs como se soubessem da nossa chegada e quisessem vir dar-nos pessoalmente as boas-vindas.

A princípio, ficámos contentes por reencontrar um patrício nosso com quem pudéssemos trocar, no idioma que morríamos de saudades de ouvir, algumas palavras além de um mero cumprimento que acompanhava um gesto ou de uma palavra de agradecimento quando lá vinham com uma tigelinha de sopa para comermos à refeição. Mas depois mais ficámos mais circunspetos.

Vimos uma tenda enorme coberta com uma lona que a camuflava, como se ela fizesse parte da vegetação e do arvoredo que avistáramos nas últimas duas léguas. Pelos gritos dilacerantes, percebi que se tratava de um hospital de campanha improvisado, no qual, com lençóis ensanguentados, aos acamados que estavam feridos, os companheiros tentavam por todos os meios tapar todos os orifícios abertos pelas balas.

Saí dali com a impressão de ter assistido ao vivo a uma fita de cinema mudo de terror que ainda não estava em voga, cujo protagonista no final é assassinado. Meteu-me pena ver ali deitados tantos jovens estropiados, que deviam estar em casa fazendo a vez desses médicos cuidando dos familiares que podiam estar doentes.

Passou uma semana e a seguir outra, cada dia sucedendo ao que o precedia sem ser afinal aquele pelo qual valia a pena estar ali lutar, arriscando a vida.

Agora eu era um soldado entrincheirado num campo de batalha da 1ª Guerra Mundial que estava a decorrer como uma partida de xadrez, rechaçando as tentativas de assalto do inimigo ao lugar onde estávamos, e que se viesse no mapa seria com um ponto de interrogação ao lado do nome, porque muita gente devia até duvidar da sua existência.

Ainda não estava longe de casa há tempo suficiente para prever as consequências psicológicas da guerra na minha vida, mas desejava há muito que as nações beligerantes assinassem um armistício que vinculasse as gerações vindouras à paz, evitando um conflito de maiores proporções que sucederia dali a duas décadas.

No presente ano assinala-se o rebentamento do conflito que durou 4 longos anos e se alastrou da Europa à Ásia, ao médio-oriente e a África, ceifando a vida a 10 milhões de seres-humanos.

Apetece-me, nesta breve passagem do meu diário, transcrever Romain Rolland, Nóbel de Literatura francês em 1915 que foi professor de História e disse, passo a citar: “ Se é preciso na paz preparar a guerra, como diz a sabedoria das nações, indispensável também se torna na guerra preparar a paz “.

Li, concordo e subscrevo.