A idade ingrata

Ao primeiro sinal de acne no rosto, que detetei hoje de manhã enquanto me via ao espelho a lavar os dentes, é que eu percebi que não era na minha pele que queria estar quando saísse de casa no dia do regresso às aulas, mas na de outro rapaz de quinze anos como eu que não padecesse do mesmo mal ou não estivesse tão afogado em problemas na vida que atribuísse ao que considerava ser “um mero problema de pele resultante da inflamação das glândulas sebáceas” uma importância inversamente proporcional à que eu lhe dava, agora que estava consciente do entrave que tal problema podia representar no meu propósito deste ano de conseguir finalmente arranjar uma namorada entre as mais de vinte raparigas que havia na turma.

Mal podendo acreditar no que via, esfreguei os olhos com os dedos sujos de pasta e mirei-me com mais atenção do que algum dia alguma delas fizera, debruçando-me sobre o lavatório para mergulhar, nas mãos unidas em concha que apanhavam a água que pingava da torneira, o rosto até ficar submerso na água fria, como se quisesse à força despertar de um sonho que, além do mais, era tardio porque estava habituado a acordar muito mais cedo.

Por achar que se nada fizesse urgentemente para travar a progressão da doença, rapidamente teria o corpo inteiro coberto de pontos negros semelhantes a marcas de picadas de agulha como aquelas, pus-me à procura de um antídoto, que na ocasião era um creme antirrugas que espalhei nas bochechas, o qual a minha mãe guardava no fundo de uma gaveta fora do alcance da minha irmãzinha de seis anos, que por ser muito ingénua acreditava em que era por passar nele os dedos e comê-lo que ela tinha melhor aspeto do que as mães das outras crianças que frequentavam a sala dela no jardim-de-infância.

Escusado será dizer que por não estar habituado a usar aquela gama de produtos, fiquei com a cara feita num bolo, depois de tê-la borrado com uma pasta branca que parecia autêntico creme de pasteleiro. Com um ardor nos olhos e uma sensação de pele arrepanhada que se estendia até ao pescoço, tratei de limpá-la agarrando-me à primeira toalha de rosto que apanhei, uma beije que estava meio-encardida e no final ficou exatamente da cor que há muito a minha mãe, depois de tê-la mergulhado por diversas vezes em lixívia, desejava que ela ficasse.

Que sorte a minha, não ter ninguém entrado no momento em que eu, depois de ver o estado em que a tinha deixado, tentava escondê-la no cesto da roupa suja, por entre cuecas e soutiens. Se fosse apanhado, haveria de empalidecer por causa do susto, e certamente sobressairiam ainda mais as terríveis marcas no rosto que queria à viva força ocultar.

Corri para o quarto, com o corredor às escuras e vi as horas. Era cedo. O meu pai, que levava sempre a minha irmã, já tinha ido trabalhar e àquela hora só a minha estava deitada a dormir. Relaxara um pouco os antigos hábitos de deitar cedo e cedo erguer, desde que perdera o emprego de operária na fábrica de rolhas onde, à força, lhe queriam enfiar uma para não denunciar ao sindicato os atos ilegais que ali eram praticados em nome da necessidade de aumentar a produção para dar respostas às encomendas dos clientes.

Um dia, recusou continuar a fazer turnos consecutivos de doze horas e, por causa disso, passou a engrossar a lista de desempregados que a custo sobrevive com menos dinheiro do que, ao anterior patrão, não bastava para comprar charutos de Havana durante um mês.

Era vê-la ao princípio de cabeça perdida, preocupada em que o dinheiro não chegasse para pagar as contas que nos permitissem chegar até ao final do mês. Com razões acrescidas, se soubesse que afinal a percentagem do que recebia sobre o total dos gastos supérfluos dele era inferior, se ao dinheiro que o tal fulano desperdiçava em tabaco, juntasse a despesa em bebida e jogo clandestino.

Por mim, dar-me-ia por satisfeito se naquele momento tivesse uma infinitésima parte da coragem dela para enfrentar os problemas resultantes do dia-a-dia. Talvez no dia do regresso às aulas pudesse sair à rua de cara descoberta, e ficasse admirado ao descobrir o crédito de confiança de que os meus amigos me achavam merecedor pela coragem demonstrada.

Sem querer, lembrei-me de uma personagem dos desenhos-animados que a minha irmã via na televisão e tive vontade de rir: um urso lilás de olho azul que sacudia freneticamente a cauda, por causa da irritação que lhe causavam os comentários pouco abonatórios dos amigos acerca das suas orelhas, como se quando a sacudisse enxotasse as moscas que o cercassem e, com elas, o motivo que a causava.

Pensando bem, era como eu reagia com as pessoas que viviam comigo, quando alguém me irritava ao ponto de eu próprio lamentar não ser também daquela cor, para todos à minha volta perceberem qual era o meu estado de alma e resolverem que, até acalmar, o melhor era deixarem-me no meu canto sozinho.

Inúmeras vezes, esquecendo tudo o que a minha dedicada mãe me ensinara, descarregara, como fazia S. Pedro sobre os inocentes quando nos brindava com uma chuvada no Verão estragando os planos de ir à praia a quem tirava férias nessa altura, e entrava na sala de estar provocando deliberadamente a minha irmã, mudando o canal de televisão que ela estivesse a ver ou pondo a música a tocar alto, irritando a minha mãe, para esconder dos vizinhos os gritos que a mais pequena dava se o que eu estivesse a impedi-la de ver naquele instante fossem as aventuras dos Irmãos Coala ou as desventuras da Ovelha Choné.

Na verdade, sempre achei que o melhor para mim seria, a fim de evitar reveses indesejáveis, conseguir reverter a favor de algo mais útil do que discutir, a energia que despendia a importunar os outros. Assim, em vez de perder tempo a pensar numa desculpa esfarrapada para os dias em que não me apetecia sentar à mesa com eles a jantar, podia perguntar à minha mãe se precisava de ajuda para levar os copos, os pratos, os talheres e os guardanapos para a mesa; e em lugar de propositadamente tropeçar nos brinquedos da minha irmã, como se não visse onde ela os arrumara, podia e devia auxilia-la a pô-los à vista de todos, onde não só eu mas também a nossa mãe os visse, para o caso de fazer questão de arrumá-los no devido lugar nos dias em que chegava antes de mim a casa.

Talvez um gesto da mesma natureza, igualasse a generosidade do meu e de alguma delas, ou das duas, viesse agora o apoio necessário para, nas circunstâncias miseráveis em que me encontrava, voltar a ganhar a coragem de sair à rua.

Quando a minha mãe se vestir e for à rua, fico a aguardar ansiosamente que ela regresse a casa. Espero que tanto ela como a minha irmã voltem depressa para casa, de onde doravante só me atreverei a sair disfarçado de boneco de peluche, empurrado num carrinho de bebé por uma ou enfiado na mala da outra, e me digam que, independentemente de qual for o meu aspeto, sempre me acharão tão bonito como o discurso de boas-vindas a ambas que preparei para recebê-las.

Como ainda faltam dois dias para as aulas começarem, estou esperançado de que até lá tudo se resolva a contento e possa, na 2ª feira estar em pé de igualdade com os meus colegas, significando isto que tanto poderá ser por me ter curado e poder apresentar-me de cara limpinha como antes ou por terem eles adoecido e estarem nesse dia com a cara de pele oleosa e sarapintada como eu.