Inimigo do Zico? Cale o Bico! – Carla Vieira

Há alguns dias atrás comentei no meu facebook que tinha lido as duas crónicas do senhor Daniel Oliveira sobre o assunto do Zico, e que entre uma e outra mudei drasticamente a minha opinião sobre o nível de cultura do homem em questão.

Eu bem que nem queria sequer tocar neste assunto porque acho que já muitas pessoas (se calhar até demasiadas) confrontaram este problema, e eu tenho pouca paciência para confusões destas. Na minha sincera opinião, vida é vida e nem pena de morte nem abate deviam ser defendidos. Mas vamos passar essa parte à frente durante uns minutinhos por favor.

Sou fã de pessoas que dizem aquilo que querem e defendem as suas opiniões, por isso não me admira que o senhor Daniel tenha falado duas vezes sobre o mesmo assunto. Obviamente deu pano para mangas e exultou gente e mais gente a ler e dar-lhe cliques. Se fosse comigo vos garanto que faria um segundo take também, porque sou esse tipo de pessoa. Admirá-lo-ia, se não achasse que lhe faltam uns quantos parafusos e que devia deixar a filosofia para pessoas educadas nesse aspecto (que ele evidentemente não é).

O assunto do cão que mordeu o bebé está repleto de discussões que não chegam a lado nenhum. Dizem uns que o cão devia ser abatido; dizem outros que não. Dizem uns que o bebé devia estar vivo; dizem outros que se o cão fosse bem tratado, o bebé estaria vivo. Diz que disse e troca-bitaites são coisas que não me assistem, porque dão azo a estas conversas azedas entre pessoas que pouco sabem do que falam ou falam do coração que toda a gente sabe ser parco de razão.


As pessoas que falam para um público mais abrangente também deram os seus dois dedos de fala sobre o que acham e deixam de achar, só que claro, a esses toda a gente os critica ou aclama porque toda a gente os conhece. Passemos então ao assunto do senhor Daniel e as coisas que ele disse que chocaram muita gente, e falemos também da insistência do senhor de bater no ceguinho com uma cana de brotoeja.

E diz ele o seguinte, na crónica da confusão:

Diz a petição: “Se não se abatem pessoas por cometerem erros, por roubarem, por matarem…então também não o façam com os animais!” A comparação é de tal forma grotesca que chega a ser desumana. Eu sou contra a pena de morte. Eu como carne de animais que foram abatidos. Serei incoerente ou limito-me a não comparar o incomparável?

Realmente tenho a dizer que comparou o incomparável, mas não no bom sentido. A incoerência também está lá, mas falemos disso mais à frente.

Os animais não têm, para os humanos, o mesmo estatuto das pessoas. E quem acha que têm não percebe porque consideramos a vida humana um valor absoluto e indiscutível.

A lógica deste argumento é quase inexistente. Repare-se: os animais que comemos nascem PARA serem abatidos. O propósito deles não é serem acarinhados, mas sim comidos. Já aí estamos noutro assunto completamente diferente. Além disso, nós não comemos carne de cão. Vamos lá pôr os pontos nos i’s e construir qualquer coisa com lógica, e não comparar laranjas e maçãs, pode ser?

Agora, que os animais não têm o mesmo estatuto das pessoas? Verdade. Mas como se sabe, as coisas que não têm valor inerente a elas, nós damos-lhes o valor que achamos apropriado, dada a nossa relação com tal coisa. Ou seja, se nós gostarmos muito de cães, vamos dar a todos eles um valor que as pessoas que preferem gatos não lhes vão dar, por exemplo.

Sendo assim, este tipo de valorização é relativa. Ênfase porque o senhor Daniel decidiu dizer na sua crónica de seguimento exactamente aquilo que eu estou a dizer, ou seja, fez por si só um bom trabalho a destruir o seu próprio argumento.

Resumo assim: a vida do humano mais asqueroso vale mais do que a vida do animal doméstico de que mais gostamos. Sempre.

Tenho todos os tipos de grande pena por tal frase infeliz. Tenho um nível ainda maior de pena pela justificação que ele escreveu a seguir à frase. Ele diz que tem animais (coisa parva de se dizer porque não interessa para a discussão sequer), e que acha que os defensores dos direitos animais relativizam os direitos humanos, que são, na mente do escritor, “excepcionais”. Meu caro, não sei quem lhe disse tal coisa, mas enganou-o muito bem. Não só tal coisa é completamente incorrecta neste nosso século XXI como também meteu os pés pelas mãos. Diz ele na segunda crónica que é um relativista, mas cospe naqueles que relativizam? Meu amigo, controle as suas incoerências.

Passando à frente dos comentários, vamos lá à segunda crónica. Comecemos:

Sou um relativista. Ou seja, reconheço que os valores pelos quais nos regemos são construções culturais e históricas. E sou capaz de tentar compreender e contextualizar, mesmo que não os aceite, valores bem diferentes porque foram construídos em contextos diferentes.

Menos os que não lhe cheiram, certo? Pois é. Aí reside um grande problema, que é a total hipocrisia e o facto de não ter o cuidado de editar as crónicas para mascarar a estupidez inerente a quem fala de filosofia sem a perceber.

Ah, e acerca disso, o que o senhor é é um “subjectivista”, ou seja, acha que os valores são subjectivos, e não objectivos. São coisas diferentes, caro.

Eu pouco vou falar desta crónica, porque por muito que a leia ela continua para mim a ser um completo debitar de conceitos filosóficos desprovidos de razão e pensamento próprio. Eu sei que filosofia deve meter bastante medo a muitas pessoas, e por isso basta falar-se em conceitos filosóficos que muita gente vai engolir em seco e passar à frente. Infelizmente para o autor desta infelicidade, eu tenho uma licenciatura nesse ramo às costas.

Ao colocar as relações humanas no mesmo patamar que as relações com os animais a escravatura torna-se aceitável, porque desprezamos essa excepcionalidade que a liberdade humana nos confere. Se eu sou dono de cães e de gatos, numa relação necessariamente desigual – e que só pode funcionar se for desigual -, porque raio não hei-de ser dono de pessoas? Se eu mato animais para me alimentar, porque raio não hei-de matar seres humanos para garantir a minha subsistência?

Porque, criatura, se percebesse tanto de filosofia como acha, perceberia que no que toca a juízos de valor, não só somos nós próprios que os construímos, mas também os hierarquizamos. Ou seja, há certos valores que nós nunca iremos pôr de lado, tais como a igualdade entre todos os seres humanos. Não tem nada a ver com a liberdade mas sim com a igualdade, e tal como nenhum de nós quer ser escravo, recusamos a escravidão aos nossos iguais. Atenção! Os animais não são nossos escravos, e nós não somos “donos” deles. Usamos essa palavra por falta de outra, pois eles são apenas acarinhados por nós, tidos ao nosso cuidado, às vezes tornando-se eles os mestres das nossas pessoas. Pelo menos quem tem gatos defende esta teoria. Mas sendo nós donos de animais, senhor Daniel, e tratando-os tão bem, então sermos donos de pessoas com certeza ditaria que as trataríamos ao mesmo nível dos nossos bichinhos? Seríamos portanto nós os escravos de tais pessoas. Queira explicar em que termos está a falar, e como é que sermos amigos dos animais faz de nós esclavagistas.

Finalmente, acerca do abaixo-assinado contra o abate do Zico ser, e cito:

perigosíssimo do ponto de vista filosófico

Peço-lhe só, outra vez, que explique de que modo é que a recusa de matar um animal faz de 70 mil pessoas um perigo à humanidade e ao seu conceito de “humanismo”. Contrariamente à crença do senhor Daniel, “humanismo” é uma teoria filosófica que assenta apenas na importância do homem no aspecto da racionalidade, da ciência, na recusa de autoridades superiores. Simplesmente, nada tem a ver com o lugar dos animais irracionais ou outra peta que queria esfregar nas pessoas.

Eu até podia continuar a debitar sobre este assunto, mas o que queria mesmo era apenas e somente mostrar que até quem fala muito, às vezes acaba por não dizer nada de jeito.

Vou continuar sem dizer nada sobre o assunto do abate, até porque a minha opinião pessoal não é para aqui chamada. Aviso também que não continuarei a desbocar crónicas acerca de outras pessoas, até porque não é uma prática muito bonita. Posto isto, acho que o senhor Daniel merece, porque quem se mete com filosofia, mete-se com os estudantes do curso, e nós até sabemos coisas.

Crónica de Carla Vieira
Foco de Lente