Mil Novecentos e Noventa e Oito. O Jardel. E o Festival Mundial da Juventude

Mil novecentos e noventa e oito. Foi há muito tempo. Foi no outro lado da vida. A que só corre na rua que cada um tem cá dentro. A memória.

Em mil novecentos e noventa e oito tinha todos. Aqueles que hoje só tenho na rua que corre em mim. Aí, os meus têm sempre a mesma cara. Aí, na terra dos sonhos, o meu pai anda tem bigode. Preto. Farto. À homem.
Aí, a minha mãe ainda desafia os paralelos da rua. Olha-os nos olhos. Faz cara feia. Ou tenta. É bonita até a fazer cara feia. Olha-os sem medo. Corre os quatrocentos metros barreiras empoleirada em tacões de vinte centímetros. Ganha sempre.
Aí, a Ana ainda cobre a testa com repas fininhas. E eu estudo com ela para o teste de História. Digo-lhe que o que diz no livro está errado. Que Pátria não é o sítio onde nascemos. Que é o sítio para onde corremos. Pátria é a luz que nos alumia. É o sol a entrar devagarinho. Aí, eu ainda ensino a Ana. Hoje não. Hoje é ela que me diz para ir por aqui. Ou por acolá. E eu vou. Sempre.

Mil novecentos e noventa e oito foi uma fisga. Um pau em forma de ípsilon, um elástico preso nos vértices e eu a ser lançado. Voei muito. Por paragens com cheiros diferentes. Com pessoas de muitas cores. Uns tinham carapinha. Outros tinham olhos em bico. Todos à procura do mesmo. Da paz. O sítio mais difícil de chegar.
Andei sempre perdido. Mas sempre à procura. Entendi que ninguém chega à meta à primeira. Nem à segunda. E que o caminho não tem de ser como deve de ser.
Mil novecentos e noventa e oito foi o ano que me dividiu em dois. O menino. E o homem. E assim fiquei. Até hoje. Ora menino. Ora homem.

Em mil novecentos e noventa e oito o Jardel levantava as Antas. Era uma girafa que dizia Graças a Deus! Tinha o pescoço maior do mundo. Estava sempre onde tinha de estar. À hora certa. Ao segundo certo. Tinha uma hélice por cima da cabeça. Ia por ali acima. Subia, subia, subia. E era golo. E as Antas erguiam-se. Como ele. Com as costas direitas. E as Antas berravam. E expulsavam todas as migalhas de diabo que há em cada um. Por um instante.

Pudesse a vida parar naquele segundo. Pudesse a vida ser caras a gritar golo em câmara lenta. Inundadas de luz. Da que alumia. Da que alumiava o meu pai. Que me pegava ao colo. E ficávamos ali. Coração com coração. A escutar, com o peito, o galope louco do de cada um.

O Jardel é metáfora. Só. Mais nada.

Em mil novecentos e noventa e oito percebi que tinha de ter o pescoço mais alto do mundo. Que tinha de ter as costas direitas. Que tinha de trepar o muro que vivia nos meus olhos. E olhar mais longe.

Fui ver o mundo. Fui ver como eram os outros. Aqueles que os desertos nos tapam. Aqueles que a Linha do Equador nos esconde. Aqueles que de quem o Mar do Norte nos separa.
E lá fui. Rápido. Montado na passarola voadora que era.

Em mil novecentos e noventa e oito o mundo estava todo na Costa da Caparica. Era o Festival Mundial da Juventude.
Éramos uma dúzia de meninos à espera do milagre. De ouvir as trinta mil línguas que o mundo não tem. De ver as infinitas caras que o mundo tem. De cheirar os cheiros todos que há. E de inventar amor. Sobretudo isso. Ser alquimista da história mais bonita de todas. Pozinho para aqui, pozinho para acolá, e pronto. Rebentavam as águas. E o amor nascia.

Magia, caramba! Magia!

Se fosse de longe, melhor ainda. Fazíamos juras. Cada um na sua língua. Algumas palavras eram chinês. Aí, olhávamos para os olhos um do outro. E passávamos a  falar a mesma língua. É nos olhos que estão as regras de sintaxe.
Depois, mais juras. Fazíamos uma cruz com os dedos. E dávamos um beijinho ao indicador que ficava por cima. A seguir, o indicador que estava por baixo vinha para cima. E levava um beijinho, também.
Dizíamos que do Porto a Adelaide eram só mil horas de barco. Ou que nos podíamos encontrar a meio. Abríamos o Mapa Mundi com os olhos muito abertos e apontávamos o dedo, ao mesmo tempo, para uma ilha pequenina ao largo de Moçambique. Era ali o meio. E ia ser para sempre. Era sempre para sempre. Os beijos iam ficar pela metade. As promessas também. Mas era para sempre.

Lá, naquele simulacro de mundo, conheci gente de todo o lado. Cento e muitos países a dormir em filas de tendas que nunca mais acabavam. Gente com Deus. Gente sem Deus. Não interessa. Nada! Naquele parque estavam pessoas. Daqui e de acolá. E eu lembrava-me da Ana. E do teste de História. Pátria não é o sítio onde nascemos. É o sítio para onde corremos.

E Deus, a existir, acreditava em todos que ali estávamos. Era apóstolo de cada um de nós.

Era mil novecentos e noventa e oito. O ano em que o meu pescoço foi por ali acima. Foi há muito tempo. Foi no outro lado da vida. A que só corre na rua que cada um tem cá dentro. A memória.

JoãoNogueiraLogoCrónica de João Nogueira
Pés bem assentes na lua

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