De Miles Davis a Bin Laden – Francisco Capelo

Quando Miles Davis lançou Kind of Blue, talvez não esperasse vê-lo transformar-se, ao longo dos anos, no álbum mais influente do Jazz Moderno. Davis pertence a uma tradição de um Século de Jazzmen de grande qualidade, começando em Louis Armstrong, passando por Duke Ellington, pelo grande Charlie Parker, Thelonious Monk, Oscar Peterson e finalmente o mais místico e sublime de todos, John Coltrane. Miles, como genial trompetista que foi, criou um som totalmente inovador e, pelo caminho, desceu à realidade, à natureza e arrasou os floreados formais de um Bebop já algo cansado (que tinha sido criado por Bird e Dizzie Gillespie). Através da melodia mais simples, do sopro mais puro, do ritmo mais pausado que se possa imaginar: ali, não havia rasto dos excessos de drogas de um Parker, ou dos excessos rítmicos e quebras bruscas do Free Jazz de um Ornette Coleman.

No entanto, ritmo pausado não quer dizer desatenção, perda do sentido da realidade (que era, e é, vibrante de vida e… de morte); é exactamente o contrário – o ritmo trepidante da vida americana produziu uma nova respiração, calma, plena de sabedoria, neste mestre do Jazz.

Tal como Miles, também Bin Laden é filho de uma longa tradição de profetas- guerreiros (de vários séculos e não apenas de um século…), que se baseia na sabedoria profunda do sentir do Povo Árabe. Aos 23 anos sentiu a sua revelação, e aos 33 anos regressou ao País que o viu nascer. Trata-se claramente de um Profeta com uma missão. É um Profeta da destruição. Certa vez, em Jalalabad, convocou dois grupos de 3 homens para defenderem as portas da cidade: todos eles, ao final do dia, tinham morrido… Este ser humano não vacila perante a morte, e contam-se histórias impressionantes sobre a sua frieza em pleno campo de batalha. Discordo dos meios utilizados, mas a eficácia sobre os poderes adormecidos das sociedades contemporâneas é indesmentível.

É penoso ver o ridículo em que caem os líderes políticos ocidentais que, esses sim, não representam absolutamente nada em termos de valores espirituais profundos das populações que proclamam defender. Todos os dias, de facto, dizem aos altos berros, em plena arena da comunicação social, que irão combater o terrorismo. Acontece que o terrorismo só se combate diagnosticando sociologicamente as suas causas e actuando directamente sobre as mesmas, e não enviando os bombeiros e ambulâncias tratar das consequências.

A comunicação social, por sua vez, tem desempenhado um papel ignóbil: ao mesmo tempo que se tornou o verdadeiro primeiro poder em todo o mundo ocidental, é a primeira a ridicularizar os líderes político- religiosos árabes, fomentando o ódio inter- civilizações que é totalmente desaconselhável, sobretudo nos dias que correm.

Tal como Miles Davis, também Laden é um homem de grande profundidade espiritual; tal como Miles, também ele improvisa, utilizando meios tão destrutivos como criativos (Miles utilizava drogas e um trompete, Laden utiliza bombas e fica à espera que a hipocrisia política ocidental faça o resto do trabalho por si).

A questão não é a de saber como se vai matar este homem, pois muitos outros se seguirão, após este exemplo de contra- poder aos americanos dado de forma tão clara; a questão é a de saber se os americanos e os israelitas esperavam ou não este ataque maciço, após terem violado consciente e constantemente todas as resoluções possíveis e imaginárias das Nações Unidas durante décadas e décadas.

A questão também se coloca em relação aos seus aliados europeus, que, cegos pela aparente bondade do Plano Marshall do Pós II Guerra Mundial, julgaram ser possível virar as costas ao seu próprio passado, à sua própria memória e história, prestando vassalagem a um País que já usou a bomba atómica em cidades indefesas por duas vezes, provocando uma carnificina indescritível de centenas de milhares de vidas com uma indiferença e aparente normalidade impressionantes, até para as habitualmente abúlicas sensibilidades ocidentais…
Gostaria de terminar dizendo o seguinte:

Num jogo mental- que é o que Bin Laden está a fazer com o mundo ocidental- utiliza-se o melhor jogador desse jogo, e nunca, mas nunca, se envia um sniper para assassinar o outro jogador, pois isso revela medo, medo de que o jogador oponente seja melhor, mais sabedor, e possa ganhar o jogo seguindo as regras desse jogo. Trata-se de um jogo com regras relativamente novas, sem dúvida, mas isso não justifica a falta de cultura dos americanos e o seu comportamento de elefante- em- plena- loja- de- porcelanas.

Matar não nos vai fazer entender a causa do problema: é a saída mais rápida a um nível puramente conjuntural, mas não é a melhor saída. Para um problema como o terrorismo utiliza-se uma estratégia, e não uma mera táctica. Este é um do ensinamentos militares básicos que os americanos teimam em não compreender, infelizmente, para todos nós.

NOTAS IMPORTANTES:

  1. Se este artigo tem alguma imprecisão factual, agradeço quaisquer esclarecimentos;
  2. Este artigo foi escrito antes do assassinato de Bin Laden, e eu pergunto-te, caro leitor, se isso alterou alguma coisa…

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O Suspeito do Costume
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