Namoro à vista

Como supostamente deveria ela reagir ao convite daquele estranho para, depois do expediente, saírem e só voltar a pensar em trabalho na manhã do dia seguinte?

Cláudia era o nome dela e as funções que desempenhava eram as de balconista numa minúscula loja de um centro comercial, tão pequena que passava despercebida por entre outras de maiores dimensões, quase na proporção de alguns dos modelos de lingerie de senhora expostos na montra.

Um edifício de três pisos erguido de raiz para albergar uma fábrica de bolachas de que foi expropriado o dono por acumular dívidas ao Fisco e à segurança Social. Reconvertido num prédio de habitação, dele não viria o atual proprietário gabar-se, anos mais tarde, de ser um dos mais modernos centros comerciais de Leiria. Era facílimo encontra-lo, incrustado entre duas famosas torres de escritórios que, como se não lhes bastasse para se tornarem notadas terem as fachadas em vidro, ainda tinham no telhado a elevarem-se em direção ao céu, antenas de radiodifusão do sinal das três principais empresas de comunicações a operar em Portugal.

O estabelecimento onde Cláudia entrava cedo, era pertença de uma sua tia que até á deposição dos restos mortais do seu marido libanês num caixão onde tiveram de metê-lo encolhido, só por ocasião de ter escolhido o nome do filho mais novo fora dona do seu nariz. Serviu-lhe de exemplo para os dois que vieram a seguir no espaço de quatro anos. Era arreigada à família, mas era escusado copiá-lo do pouco menos que impronunciável tetravô ucraniano do marido que nascera da relação entre um dono de circo letão e uma bailarina eslovaca.

Perto dela, duas caixas de cartão com soutiens e cuecas de renda desirmanadas, estavam assentes em cima do balcão cujo tampo era de vidro e sob o qual se puxava uma gaveta contendo acessórios de moda do género dos brincos de pechisbeque e do colar de pedrinhas coloridas que ela usava sobre a blusa. Era uma rapariga vaidosa como as do seu tempo, aquela diante da qual, quem o visse com as pernas a tremelicar, pensaria que o rapaz estava pela primeira vez. Chamava-se Ismael e trazia um boné de pala enfiado na cabeça, de que naquele dia não precisaria para se proteger do sol porque estava de chuva, nem do frio, porque para isso servia vir de cachecol, luvas e blusão de gola de pelo apertada no pescoço, como se por ali pudesse escapar-lhe o calor que emanava do peito em brasa.

Mais experiente na arte da sedução, Cláudia tirava de letra quando interessado nela, algum conquistador se punha armado no vigilante da empresa privada que fazia a segurança, a rondar-lhe a porta como se não fosse dele que partisse a ameaça que recaía sobre si. Tinha completado os vinte e oito anos recentemente e, à imagem das mulheres em geral, tinha uma constituição física que lhe permitia manter-se à altura das adversidades. Era resistente ao stresse e nunca a cansavam as horas extraordinárias que trabalhava a mais para poder, antes de regressara a casa à noite, retira das paletes, desencaixotar e colocar nos expositores, as peças de roupa íntima com que vestia e dava vida aos manequins, enquanto jantava um prego entre duas ou três goladas de coca-cola que bebia à pressa para se despachar.

Como deveria Cláudia reagir ao convite para sair, daquele estranho que desconhecia chamar-se Ismael e parecia conhecê-la demasiadamente bem para saber que adorava restaurantes de fast-food onde se podia encharcar em batatas-fritas? Sorrir-lhe ou com a desconfiança própria de quem tem a certeza de que não são dele, as piadas que ouve da boca de um cómico?

Talvez proporcionasse igual prazer a ela, darem um passeio pela zona histórica, no bairro medieval ao redor do castelo ou irem a penantes até à baixa, de onde a visão que tivessem da colina onde aquele se situa lhe desse a ilusão de estarem numa rua que ela ainda não conhecesse, nem tivesse palmilhado. Do cimo daquela, viam-se os telhados das casas, distantes como se estivessem rente ao chão e naquela zona as ruas só se pudessem percorrer pelo ar, além do edifício da nova praça de touros em construção, cuja inauguração era aguardada desde a época anterior à elevação da vila a cidade.

Fora mais lesta a dar à tia a resposta que ela esperava. De segunda a domingo e mediante o horário que a tia agora viúva estivesse disposta a fazer, aceitava trabalhar por turnos, com uma folga semanal rotativa, que era quando a tia ficasse em casa a descansar, com o telefone ligado sem som para não a maçarem os fornecedores a quem devia dinheiro das faturas em atraso.

Estava nessa altura desempregada há oito meses, recebendo da Segurança Social um subsídio que mal daria para ir àquela loja duas vezes às compras e nem sequer levar tantas cuecas como as que estava já a precisar.

Tinha já trabalhado numa loja de rua, numa perfumaria com que já não rivalizavam as da concorrência que tinham fechado por falta de clientes. No dia em que foi chamada para a entrevista de seleção, desanimou-se tendo deparado com candidatas que, além de apresentarem currículos de três páginas preenchidos com os locais onde já tinham trabalhado, mais facilmente do que ela encheriam as medidas de quem achasse que a escolha deveria recair na mais bonita.

Mas o facto de ser alta, embora desengonçada, abriu-lhe algumas portas. Naquele dia, estar de pé permitiu-lhe ser vista pela dona da loja de perfumes, antes de ter debruçado atenção sobre as demais raparigas que não obstante serem mais bonitas já estavam em desvantagem. A aliar a isso, terem-lhe corrido bem as provas de Português e matemática que fez nos testes psicotécnicos, fê-la pensar que se com a nota que obtivesse ficasse classificada em primeiro lugar, à segunda entrevista, que seria a definitiva, talvez já pudesse ir sozinha.

Não possuía experiência anterior na função de vendas, nem de contacto direto ou indireto com o público. Sempre fora consumidora e jamais se imaginara no lado oposto do balcão, desempenhando um papel para o qual nunca fora requisitada, a não ser quando ia com a mãe às compras e, no caso de esta ter dúvidas diante do espelho, era chamada a pôr-se no lugar da empregada para opinar sobre que blusa, de entre as duas ou três que ela mais gostava, lhe assentava melhor atrás e à frente fazendo parecer mais magra. Conseguia ser persuasiva ao ponto de convencê-la a comprar todas e a voltar mais tarde para levar uma saia que combinasse com elas combinava na perfeição.

Talvez tenha sido nos predicados que reparou a tia ao convidá-la. Iniciou funções no dia trinta e um de outubro, em plena estação outonal, a característica época do ano em que caem as folhas das árvores, só não das que arderam e morreram de pé no verão, a característica época do ano em que a incúria humana coexiste com os fogos florestais.

À medida que se aproximava o Natal, veio o rumor de que perderia o dia semanal de folga. No entanto, ela não se ralava com isso. Agradava-lhe o que fazia e o que comprava feito, no centro que conhecia bem como às linhas da palma da mão.

Sabia o que a esperava todos os dias quando saía de casa e à patroa agradava aquilo com que dela podia contar. Cláudia repunha nas prateleiras que muitas mãos a mexer esvaziavam, a roupa que as freguesas compravam ou trocavam de lugar como se lhes desse o direito de desarrumar a loja, trazerem a bolsa recheada de dinheiro para gastar em compras e em generosas gorjetas. Sabia como persuadir as clientes a comprar, mesmo aquelas a quem não ficasse tão bem como aos manequins que a vestiam, a roupa interior que consideravam demasiadamente bonita para andar escondida e por isso compravam vestidos com profundos decotes.

Aos homens que iam com elas, o que Cláudia nunca achava que ficava bem eram os olhares maliciosos que eles não raras vezes lhe lançavam, tivessem mais idade e entrassem acompanhados da esposa ou fossem mais novos e levassem pela mão a namorada.

Todavia, Ismael era diferente para melhor, do último que fizera a Cláudia semelhante convite, não era baixinho nem louro, mas sim alto e moreno e, em vez dos óculos, devia usar lentes de contacto porque para vê-la melhor não franzia o sobrolho, semicerrando os olhos como se fosse míope. Este, desafiara-a a aceitar o desafio de à tarde irem tomar um café, dando por terminado o horário de expediente durante o qual só pensaria em se queria fazê-lo perto ou longe dos olhares indiscretos das raparigas que trabalhavam perto dela e jamais lhe haviam conhecido um namorado.

Com tanto de atrevido como de inesperado, ao desconhecido, que dela se acercou com um sorriso matreiro, só faltava que à hora marcada a jovem o esperasse na entrada da loja de onde se retirara à pressa, convencido da verdade do ditado popular que diz que quem cala consente, atribuindo ao silêncio da rapariga o sim que desejaria ter ouvido. E de seguida, sumira num ápice, mais depressa do que o tempo que levou para ganhar coragem de lhe falar.

Para Cláudia, aconteceu tudo a uma velocidade desconcertante, demasiadamente grande para ela ter tempo de esboçar um gesto ou reagir de outra forma que não fosse abrir a boca espantada e longe de poder, sem pestanejar, gritar-lhe que sim, que a lisonjeava sair com ele porque mal o vira se apaixonara e não suportava sequer a ideia de viverem longe um do outro ou, pelo contrário, recusar o convite argumentando que não confiava nos homens que eram todos da mesma índole e só cuidavam de conquistar uma mulher com um único propósito.

Refeita da surpresa, entreteve-se a pensar no trabalho que tinha pela frente, enquanto não eram dezoito horas e vinha rendê-la a tia, e ainda mantinha em segredo que lhe agradava, tanto como imaginar-se a entrar com ele de braço dado num restaurante chique, pensar nesse rapaz a quem começava realmente a achar alguma piada.

E se por um lado não estava ainda apaixonada ao ponto de já não poderem viver às avessas um do outro, por outro desejava ardentemente que cupido não tardasse a acertar-lhe com um dardo em cheio no peito e a distância que ainda os separava se desvanecesse como um anel de fumo soprado para o alto em direção ao céu.

Rumo a esse futuro risonho, depois do convite o segundo passo decisivo seria dado mais tarde, quando ele fosse buscá-la e saíssem ambos pela porta grande.