Natal. É num dia que nasça a Maria. – João Nogueira

Natal. Barómetro da vida. De cada um. Ora feliz. Ora triste.

O Natal é gente. A precisar de gente. Quando não se tem gente, não há Natal. Nem vida. É sempre assim.

Tenho Natal. Porque tenho gente. São o meu Menino Jesus a nascer. Os meus.

Sou um país inteiro a vir para a rua. Com martelos de S. João. E apitos. Feliz. Em mim não há guerra. Não se ouvem canhões. Não há soldados tristes, com poeira nos olhos, a olhar para o retrato dos que estão longe.

Nunca ninguém me morreu. Pelo menos a sério. O Natal é menos meu. É mais daqueles que ouvem canhões. A quem a vida faz falta por trás. E entra a pés juntos. Esses merecem um Rivoli todo de pé. Ou um Maracanã, que é maior. A bater palmas.  A fazer a onda. Porque a vida não faz claque por eles.

Descubro que não sei nada. Zero! Nunca precisei de morrer para voltar a nascer. Chorei sempre com lágrimas. E isso é fácil. Só dói a sério quando se chora com os olhos secos. Quando há tremores de terra. Em cada bocado de chão. Em todos os passos. Para onde quer que se vire.

O Natal não é mais que nada. Nem mais amor. Nem menos. O Natal passa. A vida continua.

Fecho os olhos. Para me lembrar do Natal em que fui mais feliz. Nunca falha. No escuro, vejo tudo. A minha curta-metragem. A minha História está toda lá. Estão lá os séculos todos. A noite em que cheguei a Constantinopla. As minhas conquistas de Ceuta. As desconquistas. As batalhas em que morri. As que ganhei. O dia em que fui liberdade. E independência. E quando invadi a Bastilha. E a tomei!

Lá atrás, no tempo em que havia rãs, amigos para jogar à bola  e calças de bombazina grossas , tive Natais com gente que nunca mais acabava. E com o meu avô. Que era o Natal.

Havia bacalhau com azeite fervido. Bolo-rei. Pinhões. Rabanadas. Aletria com muita canela. E havia o cheiro de tudo isso. E aquecedores ligados no máximo. E caras coradas. E mantas feias a cobrir pernas velhinhas. E muita gente a rir.

Não creio. Não tenho fé. Mas gosto do Natal. E pelos mesmos motivos de quem crê. De quem tem fé. O Natal é uma desculpa. Para se ser um bocadinho mais feliz. É uma abébia para os que têm gente. E o Homem é seta a voar para o alvo. É mais rápido que a própria sombra. Corre os cem metros em meia-dúzia de segundos. Para poder ser um bocadinho mais feliz. Por um bocadinho.

Natal é família. Ou não. A família não se escolhe. É lotaria. Pode-se ter sorte. Ser o primeiro a dizer Bingo! Ou azar. Natal é com quem nos arrepia. Com os que nos alumiam. E isso não é exclusivo do sangue! O tanas é que é!
Natal é com os viajantes da nossa viagem. Na minha, há muitos. Um ror deles. Alguns vão de pé na furgoneta. Aos trambolhões. Lamento. Sei que é aborrecido. E que ficam zonzos. Mas é só porque quero levar mais gente.

Um dia hei-de ter um Natal assim. Com frio lá fora. Com calor lá dentro. E com todos à mesa. Que é o sítio onde se é mais feliz.

Berro por um filho, agora. Dou gritos mudos de cada vez que olho os olhos da Elsa. E ela de cada vez que olha os meus. Desenho-lhe uma cara pequenina na barriga, quando ela está triste. A fazer de filho. E ela fica um bocadinho mais feliz. Não tenho jeito para o desenho e o filho fica feio. Com a Torre dos Clérigos a fazer de nariz.  Mas não faz mal. Imagino-o lá dentro. Com o coração da mãe ali à mão. E ali ao pé.
Não lhe vou chamar José. Maria, talvez. É simples. Só por isso.
Ainda pensei dar-lhe o nome do meu pai: Alfredo. Mas se calhar não é o nome mais bonito do mundo. Ele que me perdoe.
Ainda pensei dar-lhe o nome da minha mãe: Clarinda. Mas se calhar não é o nome mais bonito do mundo. Ela que me perdoe.
Um filho. Rebentam as águas ao meu amor. E é Deus a nascer. E eu a pegar Nele. E aí será Natal. Quando o Menino nascer.

Natal não é tempo de coisa alguma. A vida é que é. Todos os dias. E desde a aurora.

Os dias matam quem passa os dias a pensar no dia que há-de vir. É só estar só. No Natal. E nos outros dias todos. E são muitos.

Corro. Quero ter sempre gente. Tenho medo. De ser sem-abrigo de mim mesmo. De pedir esmola. Em amor. A quem quer que seja. Corro muito. Lembro-me do Domingos, que arruma carros. Gosto dele. Nos olhos tem uma pista onde há sempre fantasmas a acelerar. É órfão. Não de mãe. Não de pai. É órfão de gente. O Domingos tem os pés sempre molhados no Inverno. E tosse muito. Todos os dias me pede mais meias. Peúgas, como diz. Das grossas.
O Domingos não tem Natal. Nem Ano Novo. Os anos nunca são novos para ele. Aos anos que me pede meio euro. Para se esquecer dos anos em que teve Natal. E nunca consegue. E mostra-me a vida que já não tem. Com os olhos. Derrotados.

Na vida, melhor que ganhar, é não perder. O que já se tem. Que é tanto!

Fecho os olhos outra vez. Para voltar a ver o Natal em que fui mais feliz.

Esquisito. Estou a ver coisas que nunca vi.

Há bacalhau com azeite fervido. Bolo-rei. Pinhões. Rabanadas. Aletria com muita canela. E o cheiro de tudo isso. E aquecedores ligados no máximo. E caras coradas. E mantas feias a cobrir pernas velhinhas. E muita gente a rir.

E uma menina. Uma menina, caramba! Com pernocas gordas. Ao léu.

É  a Maria. Está a dormir no meu colo. E a respirar. Muito devagarinho.

E a Mãe. A olhar para nós. E a respirar. Muito devagarinho.

JoãoNogueiraLogoCrónica de João Nogueira

 

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