O campo da Ferraria. E a vida. A que me leva para Lisboa!

A vida tem-me levado para Lisboa. Desde cedo. Desde a madrugada do dia que sou.

Não é destino. Não estou muito para aí virado. Há coisas em que acredito mais.

 Não é destino. Mas há um consílio de deuses a brincar comigo às marionetas. Pegam em mim à vez. Mandam-me ao ar. E apanham-me, todos contentes.  Às vezes não. Mandam-me ao chão. E vão embora. E eu fico para ali. Sou peça de teatro. Bobo da corte. Faço-os rir na Ribeira. Faço-os chorar na Praça da Figueira. Ou vice-versa.

 Num Junho quente, há muitos anos, fui fazer a candidatura à faculdade. A Letras. A Literatura. Fácil. Dezasseis a português no exame. Tudo tranquilo. Preenchi os papéis de golas levantadas. E de chinelos de meter o dedo. Entretanto fui de férias. Entretanto fiquei moreno. E esfolei. E fiquei moreno outra vez. E chegou o último dia de Agosto. E soube que tinha entrado na faculdade. De Letras. Em Literatura. Só que não era bem no Porto. Era na última opção. A que preenchi por acaso. A que preenchi porque o Bruno disse que parecia mal o papel ir incompleto. Disse para pôr Lisboa. E eu pus. E aquele bocadinho de tinta preta bifurcou-me. Até hoje. Sou espargata. Uma perna num sítio. Outra no outro. E isso magoa.

Em Lisboa dormi mil e uma noites. Para Lisboa fiz mil e uma viagens. Umas de pé. Outras de costas. Outras sozinho. Mas sempre cheio. De mim. E das muitas almas que me habitam. Umas queriam ir. Outras queriam ficar. Era nas viagens que ia sozinho que não cabia mais ninguém em mim. Não havia mais bilhetes. A minha lotação estava esgotada.

 Não sou de Lisboa. Não tenho o hábito estranho de dizer os vês onde é suposto dizer os vês. Não é por mal. É por berço. O está mais à mão. Sai logo. É foguetão a sair disparado por ali acima. Mas no Império Romano que sou, há séculos que são em Lisboa. Passam-se lá. Séculos a sério. Daqueles em que se descobre o fogo. E a democracia. E a liberdade. E fica-se sempre a ser um bocadinho do sítio onde se constrói uma parte daquilo que somos. Lisboa não me pariu. E nunca me há-de parir. Um homem nunca nasce só uma vez. Nasce as vezes que for homem para isso. Para se erguer. Para se pôr na vertical. Capitão de si mesmo. Mas ventre só é o primeiro. Não se escolhe. É totoloto. Pode-se ter sorte. Ou azar. Pode ser injusto. Mas ventre é só o primeiro.

 Em pequenino, o meu planeta estava todo aqui. Rio Tinto, que não é Porto mas é quase, tinha tudo. Os mares estavam todos cá. Até havia pocinhas onde dançavam rãs, caramba! E havia um campo de terra batida. A grande área era desenhada com cal. Ficava sempre torta. Havia pó. Mas víamos tudo com mil olhos. Nesse sítio marcavam-se golos de calcanhar. E falhavam-se golos de baliza aberta. E levavam-se as mãos à cabeça. Os maiores não chutavam. Lançavam mísseis. Ao super-homem que voasse para apanhar a bola, crescia um fogo nas mãos. Daqueles bíblicos. Mas passava. O planeta estava ali. No campo da Ferraria. Que quando chovia se transformava num arquipélago. Aqui e ali viam-se bocadinhos de terra. O resto era água. Mas nós ficávamos. Corríamos de cabelo assapado e com um chafariz a sair dos buracos das sapatilhas. Mas pelo golo dava-se a volta ao mundo. E pelo abraço que vinha a seguir. Éramos tantos! Tinhámos todos dois nomes. Um era o Renato Gil, outro o Miguel Ângelo, outro o Ricardo Jorge, outro o José Carlos.

O ventre é isso. Nem é bem um sítio. É a memória do sítio onde fomos, sem querer, aquilo que um dia gostaríamos de vir a ser. É aí que me exilo. Não para ser grande. Para ser pequenino. Que é quando fui maior.

 Mas o consílio de deuses que brinca comigo às marionetas inventou um cenário muito bonito. E gosta de me ter lá. Desenhou um castelo. Desenhou sete colinas. Desenhou luz. Desenhou eléctricos que vão dar a miradouros. Desenhou bairros baixos. E um bairro alto. Desenhou um rio muito grande.  E desenhou pombas. Que me entram pelo peito dentro. Para me cantarem a  paz.  Que é o barulho que eu ouvia no ventre. O sítio de onde sou.

Não sou de Lisboa. Nunca o hei-de ser. Mas lá  ejaculei  vida. E foi lá que me rebentaram as águas a última vez. E voltei a nascer. Nasce-se sempre outra vez quando se descobre aquilo que faz de nós maiores. E eu sou um bocadinho de todos os lugar onde nasci.

Lisboa não me pariu. E nunca me há-de parir. Mas um homem fica sempre a ser um bocadinho do sítio onde constrói uma parte daquilo que é!