O Santos popular

Abrindo caminho pelo meio da algazarra e a tremelicar das pernas por causa da cerveja ao jantar, saí à rua em estado de euforia, a pensar que era noite de S. João e desatei a injuriar as mães dos árbitros que este ano prejudicaram o Futebol Clube do Porto, diante de um grupo de jovens que afinal eram adeptos ferrenhos e sócios do Benfica.

Ao jantar, com um grupo de amigos numa tasquinha em Alfama, tinha ingerido álcool além da conta e quando saí, ao som da música que ecoava em todos os lugares por onde andava, não conseguia pensar nas marchas que a essa hora desciam a avenida, sem visualizar o andar gingão de uma varina ziguezagueando pela rua como se tivesse comido e, sobretudo, bebido tanto como eu. Aos ziguezagues porque era assim que eu me deslocava, de cada vez que andava descrevendo semicírculos, dirigindo-me ao largo do Rossio onde à minha espera havia uma multidão de gente que não me conhecia de lado nenhum, mas ainda assim não estranhou ver-me no estado habitual em que ficava às sextas-feiras depois do trabalho.

Uma vez lá, com passo ligeiro, passei não dando nas vistas pelo meio das pessoas, como se fosse um corpo celeste de reduzida dimensão de passagem pelo centro do Universo onde havia planetas em trânsito para outras galáxias e estrelas de muito maiores dimensões do que a minha.

Quase em cada recanto ao longo da rua pejada de esplanadas defronte do Coliseu, alguém se tinha lembrado de organizar um bailarico popular onde se ouvia a chamada música pimba, proveniente de aparelhagens que tocavam os êxitos do momento ou então interpretada ao vivo por músicos que ouviam esses cd’s no carro a caminho do trabalho e nestas ocasiões improvisavam os temas da melhor maneira que podiam e sabiam, recorrendo a instrumentos que pediam emprestados.

Com os restaurantes apinhados, havia imensa gente sentada e dos assadores cá fora, em cujas grelhas não cabiam tantas sardinhas que pusessem fim às filas de espera de quem aguardava em pé por um lugar na rua, saíam labaredas que iluminavam a noite, ofuscando o brilho das estrelas mais distantes do sistema solar.

Por causa de uma vertigem repentina, senti-me enjoado e resolvi sentar-me num degrau da calçada com a cabeça enfiada entre os joelhos em posição de ir vomitar. Foi quando alguém me tocou no ombro por trás e prontamente ouvi perguntarem-me, no idioma de Shakespeare mas com sotaque do lado de lá do Atlântico, se sabia qual o melhor lado para subir ao castelo de S. Jorge, onde decorria um arraial, evitando ser engolido pelos foliões que desciam a correr do lado das muralhas, como se tivessem sido tomados de assalto pela ideia do seu desmoronamento e temessem ficar soterrados sem saber como escapar sem a ajuda dos cães pisteiros da Proteção Civil.

Olhei-o de relance. Era um sujeito magrinho, alto, de cabelo encaracolado, com a cara coberta de sardas e argola metálica na orelha esquerda que o fazia parecer-se com o mais temível adepto dos clubes de futebol ingleses, daqueles que vão aos estádios e provocam estragos a valer e não daqueles como por cá temos que ficam confortavelmente instalados no sofá a assistir às partidas através da Benfica Tv, ouvindo os comentários aos jogos feitos em estúdio.

Tinha de facto um ar agressivo a quem me preocupei em responder a preceito, pois não queria, a pretexto de uma pergunta de resposta fácil, motivar uma agressão da sua parte. Porém, não entendeu à primeira o que eu disse, talvez porque a minha dicção, que em condições normais não é boa, mal eu beba se torne impercebível e não dê para ninguém entender o que eu digo, como se fosse para não saberem onde eu vou, quando bebo e me apetece estar só, os amigos que perguntam só porque no intuito de ajudar se preocupam comigo em demasia.

Resolvi fazer-lhe companhia no instante em que prometeu pagar-me uma cerveja fresca mal chegássemos ao cimo da colina e fossemos a um desses barzinhos que há em redor do castelo pedir para nos servirem uma dessas servidas em copo de plástico como usam nos estádios de futebol, neste caso tanto em Inglaterra como por cá.

Atentos ao corrupio de pessoas à nossa volta, seguimos de perto duas raparigas que se nos depararam como um convite irrecusável à realização das fantasias mais bizarras. Eram lindas e uma delas, sem ter reparado que eu fixara o peito da amiga, parou a olhar para o meu amigo, corada nas faces como se ela é que tivesse motivos para sentir vergonha, talvez por não ter um par de seios de mamilos tão arrebitados para exibir.

Pouco depois, perdemo-las de vista, não porque outras duas mais bonitas tivessem surgido e tendo captado a nossa atenção, tivessem ocupado o seu lugar na nossa preferência, mas sim porque retivemos a marcha e nos desviámos a tempo de evitar sermos arrastados por uma segunda leva de pessoas que desciam a correr do lado das muralhas, como se o fizessem não afinal por temerem que elas cedessem a qualquer momento, mas por virem a fugir de um terceiro grupo que podia vir já na sua direção.

Por causa do valente encontrão que eu lhe dera nas costas para se desviar, o come on, ou seja o americano que eu seguia como se ele, sendo estrangeiro, conhecesse melhor do que eu o barzinho onde íamos acabar a noite bebendo uma dezena de cervejas, teve de se sentar para descansar um pé que torceu e eu, sentado ao seu lado, com ar desmazelado e entontecido de ter bebido tanta cerveja, para não sermos confundidos com um par de mendigos, afastei-me deixando-o a falar sozinho e a pensar que, se o confundissem com um pedinte de verdade, não seria tão mau não ter de dividir com ninguém o que lhe dessem as pessoas que, se fossem tão generosas como ele afirmava que eram na sua terra, onde abominavam os cêntimos, jamais lhe dariam de esmola notas inferiores a cinco euros.

Livre do empecilho, subi a rua que tinha pela frente e apercebi-me de que, no sítio onde estava, era intensíssimo o cheiro das sardinhas e das febras que assavam lado a lado com tomates e pimentos tão chamuscados que os próprios se confundiam com as brasas do grelhador a carvão. Com aquele aspeto nem pareciam tratar-se, de um dos mais deliciosos ingredientes das saladas de tomate que se vendiam em travessas de ir à mesa e de lá eram tiradas sem vestígios, nem do azeite nem do vinagre em que eram temperados.

Tudo era devorado a gosto. Depois de esfolados, os pimentos perdem o ar repelente e, já sem pele, cortavam-se às fatias finas e comiam-se com as sardinhas dispensando o acompanhamento das batatas cozidas que, mesmo ao almoço, me dão sono.

Em menos tempo do que demorei a recompor-me da chegada intempestiva daquele bife de má memória, dei por mim a meter conversa com uma brasileira de bunda bem guarnecida, que devia ser casada porque me respondeu com cara de sogra, que não tinha a ver com isso à pergunta do que estava ali a fazer, sozinha e àquela hora uma mulher como ela tão atraente.

Não conseguia andar direito e já perdera o meu sentido de orientação, mas não quis logo perguntar-lhe como se ia dali para o castelo, porque embora não fosse supersticioso, não desejando torcer o pé, não queria que me acontecesse o mesmo que ao meu ex-companheiro, e desse modo achei mais prudente ficar calado e não pensar em voltar a desafiar a sorte, que já demonstrara não estar do meu lado ao me ter sido dado conhecê-lo.

Sem fingir estar ofendido, ignorei-a e, sem ter sentido que estava a passar ao lado de uma grande carreira, passei por ela de cabeça levantada, sem pestanejar, como se contornasse o único obstáculo que me separava de um muito bem pago cargo de chefia.

Feliz por ter conseguido dar mais uns passos e estar mais perto da hora de beber uma cervejinha sossegado, surpreendeu-me ter-me convidado para entrar em sua casa uma velhinha com noventa ou mais anos que, do parapeito da janela do rés-do-chão da sua sala, presenciava divertidíssima uma briga entre duas varinas que apregoavam manjericos, que nesta época de romaria ao Santo mais popular da cidade, eram a nova forma de ganha-pão para quem tira o sustento do mar mas não tem mais sardinhas para pôr à venda.

Chamou-me filho, pois deve ter-me confundido com alguém que conheceria com idade para ser seu bisneto. Em resposta, só não a autorizei a tratar-me pelo meu nome que não é o de batismo, Santos, por causa de me chamar João Pedro, não fosse algum dos meus amigos, de passagem, ouvi-la chamar-me e erradamente concluir que, para matar a sede, eu tentava aproveitar-me da boa vontade de uma senhora de idade tão avançada.

Perante a minha recusa em ir lá dentro sujar-lhe os tapetes de lama, ela disponibilizou-se para trazer-me a cerveja à janela, ainda antes de ter tempo de dizer-lhe que gostava de bebê-la por copo alto e, se não fosse dar muito trabalho, que a trouxesse à temperatura a que eu gostava de beber o vinho branco, o qual podia ser uma alternativa válida no caso de ela não ter no frigorífico exclusivamente da preta que era a minha favorita.

Bebi a birra, como dizem os espanhóis, apoiado no parapeito da janela que estava almofadado, coberto com uma almofadinha para a senhora não magoar os braços. Era, no entanto, estreito para os braços de ambos e estava em tão bom estado como a fachada do prédio, visto que não cedeu à força que fiz sobre ele para não cair, quando, ao último golo, senti novamente uma vertigem e as pernas estremecerem por causa de uma quebra de tensão arterial.

Esforcei-me para não cair, pois, para me suster, não estava ali o colo de uma mulher farfalhuda de onde não me apetecesse levantar a cabeça para não constatar que o seu rosto não estava reproduzido no de todas as pessoas que estivessem espantadas ao meu redor, curiosas por saber o que me tinha sucedido.

Entretanto, dois fiéis amigos, daqueles com quem estivera na última hora, aproximaram-se e vendo-me naquele estado de embriaguez, combinaram comigo levar-me para casa, mas não me pus imediatamente de acordo, porque achei que, carregarem-me em ombros, mesmo que fosse ovacionado por toda a gente que estava presente, era uma parca recompensa pelo meu brilhantismo e esforço de me ter aguentado tanto tempo em pé, praticamente desde que saíra do restaurante.

Acordei estendido na cama, já no dia seguinte, vergado a um peso nos olhos semelhante à pressão exercida pelas palmas das mãos ou pelos punhos fechados nas pálpebras. Sentia-me zonzo e com a cabeça apertada num torno em que só poderia mexer quem soubesse para não correr o risco de ma esmagar.

Ao sonho do qual acordara cansado, a alternativa era manter os olhos fechados e tentar voltar a adormecer. Vi-me então deitado numa praia e envolto num manto de nevoeiro começado a formar no mar, que, aplicado ao meu caso, funcionava como um escudo protetor tornando impercetíveis aos olhos dos meus pais e da minha namorada, quando me vissem, as olheiras provocadas por essa noite mal dormida.

Nesse sonho, a coberto de surpresas desagradáveis, porque estava certo de que mesmo vendo-me de rastos, dificilmente uns e outros acreditariam que estava naquele estado por me ter encharcado em álcool, imaginei, saído do nevoeiro, um navio-fantasma no qual eu não embarcaria com medo de que fosse dar a algum lugar.

Mas era somente porque não tinha a certeza de que nesse lugar houvesse festas tão animadas como estas de Lisboa, onde, por desfrutar de grande fama como o seu Santo casamenteiro, era muito justamente considerado pelos meus amigos chegados, de todos o Santos mais popular.