O Senhor do Adeus, a Faculdade em Lisboa e o ano da minha Revolução. – João Nogueira

Era mil novecentos e noventa e oito. Ouvia-se Jardins Proibidos a torto e a direito. Ainda se dizia um conto e quinhentos. O Manoel de Oliveira já tinha fintado a esperança de vida em mais de vinte anos. À minha frente, uma auto-estrada. De mundo.

Em mim, sonhos. Do tamanho de um gigante. Muitos. Hoje um. Amanhã outro. Quis ser Cunhal e berrar contra o capitalismo. Gritar, de sobrancelha ao vento, que o povo é quem mais ordena. Quis ser Baía. Levantar  as Antas  com um golpe de asa. E ajeitar o  cabelo, a seguir.

Quis conhecer o mundo. De uma ponta à outra. De mochila às costas, saltava da Ponte Luís I, como os meninos da Ribeira. E lá ia. Ora em mariposa, ora de costas. Queria ir com a maré. Desembarcava em Londres, primeiro. Apaixonava-me por uma inglesa. Mas loucamente. Para o tempo não passar, trepava Big Ben acima e andava com os ponteiros para trás. À chuva, claro. E ao nevoeiro. Lá em baixo, ela. Não interessa quem.

Depois chegava a África. Negra. Como o arco-íris. Com muitos dentes brancos. E caras pretas. E olhos limpos. Sem tralha lá dentro.

Quis ser revolucionário. Dizer, de pulmões cheios,  Independência ou Muerte! Atrás de mim, um exército.  De amigos. Com sonhos iguais aos meus. Eu, o Zé, a Bia, o Sérgio, o Carlos, o Luís, a Joana. Ninguém nos colonizava, caramba!

Era mil novecentos e noventa e oito e entrei na Faculdade. Em Lisboa. Que na altura ficava a dois continentes do Porto. Era longe. Depois do Cabo das Tormentas.

Fiz mal a candidatura. Preenchi mal os papéis. Faltava-me Latim.

Até me faltou o ar!

Em Lisboa, tive asma. Mas de saudades. Em Lisboa, estive sempre perdido. Mesmo quando sabia onde estava.
Em Lisboa, via a cara da minha mãe em todas as ruas. Andava triste. Com cieiro nos lábios. Com frieiras no peito. O metro era escuro. Como eu.

Em Lisboa, em mil novecentos e noventa e oito, nunca houve sol. Vagueei em vielas, espreitei miradouros, corri marginais. E nada! Nunca houve sol. Ou eu é que nunca o vi. Ou eu é que fui cidade triste. E fria. E deserta. Com cheias. Com ciclones. Com Muro de Berlim.
Fui cidade fantasma. De onde todos fugiram. Era sempre de noite.

Cada sexta-feira era férias de Verão. Ou véspera de Natal. É igual! Chegar a casa, ouvir os bês de Bítor e os bês de baca. Chegar a casa e ver aqueles de quem nunca cheguei a sair. O frio ia logo pregar para outra freguesia. Crescia-me um vulcão nos olhos. Que entrava em deserupção ao domingo. À noite.

Lembro-me de cada uma das infinitas despedidas. Do nó cego na garganta. De ter de ir. E só querer ficar.

Sou saudade. Não há remédio!

Lisboa teve coisas boas. A minha tia Ibéria dava-me quatro contos. Os meus pais dez. A minha irmã, com treze anos, dava-me cento e cinquenta escudos. Às vezes duzentos.
Gastava-os no Cinematógrafo do Rossio. Um local dado à cultura. Onde marmanjonas de peito setenta e sete se despiam e me diziam que eu era um homem lindo. Mas só quando metia mais uma moeda de cem escudos. Caso contrário, o vidro fechava. E eu voltava a ser um homem feio.

Em Lisboa, fui roubado. Por ladrões simpáticos. Que me disseram que, em trinta anos de ofício, nunca tinham encontrado um indivíduo tão afável. Caiu-me bem, claro! Todos gostamos de carinho.
Também fui roubado pela senhora que me alugava o pardieiro. Vivíamos dez lá dentro. Um deles só usava meias com borboto. Ou meias-calças com borboto. Tinha de ar de mau. Tinha uma fotografia do Satanás no quarto. Tocava bateria às três da manhã. Tinha um cinzeiro com mil cigarros apagados. Mas via novelas. E chorava quando havia beijos. E insultava os maus e as más. E tapava a cara com as mãos quando percebia que as coisas não iam correr bem.

Em Lisboa, copiei num teste. Tudo. Tive treze. A colega por quem copiei teve sete. A professora, ao entregar os testes, disse-lhe para ela pôr os olhinhos em mim.

Estava longe do sítio onde tinha paz. Nos meus olhos, faziam excursões as caras dos meus. O bigode do meu pai. A pintinha no nariz da minha mãe. Os trinta e dois dentes perfeitos da Ana. Queria abraçá-los. Aos três. Nunca lhes vi tanto as caras como quando não as via.

Sou saudade. Não há remédio!

Em Lisboa, em mil novecentos e noventa e oito, conheci o Senhor João. Ou Senhor do Adeus. Cabelo muito branco. Todo puxado para trás. Óculos grandes. Dizia adeus às pessoas. E sorria para elas. Durante horas. Sempre à noite.

Disse-me que queria que a cidade fosse uma aldeia. Assim todos se conheciam. E todos tinham figos. E geleia. E ninguém estava só. Como ele. Como eu.

Disse-lhe adeus muitas vezes. Sorria-lhe. Sempre. Era o que faltava não sorrir a quem é bom!

Com a palma da mão a fazer de pêndulo, ora para a esquerda, ora para a direita, mostrávamos um ao outro que estávamos sozinhos. Com os olhos.

Mas eu tinha terra. Ele não. Ele pedia socorro. A sorrir. E a saudar.

O Senhor do Adeus, com a mão direita, escondido nas trincheiras daqueles olhos tristes que riam, mostrou-me que um homem é feliz quando tem terra. Quando tem alguém por quem chorar. Alguém que está à nossa espera. E que é feliz aquele que tem saudades daquilo que pode voltar a ver.

Hoje já não é mil novecentos e noventa e oito. Hoje há sol em Lisboa. É sempre Verão. Ou, se calhar, há sol é na cidade que sou agora. Onde há Mediterrâneo. E amigos a rir. E noites quentes. E pele morena. Com sal. E uma Mulher. Que conheci em Lisboa. Em mil novecentos e noventa e oito.

O ano da minha Revolução.

 
JoãoNogueiraLogoCrónica de João Nogueira
Pés bem assentes na lua

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