Ode da primavera

Corrijam-se se estiver enganado, mas o impacto de um dia primaveril logo de manhã quando levantamos a persiana do quarto, é uma das melhores visões que podemos ter, ademais se vier suceder a dias chuvosos no fim dos quais uma nesga de sol nos faz logo acreditar que eles podiam e deviam ter sido diferentes.

Levantei-me com a estranha sensação de que era sábado, embora ainda fosse quarta-feira, talvez porque inconscientemente desejasse ainda ter mais dois dias de descanso pela frente.

À minha frente, o sol a bater-me nos olhos, ofuscava a presença das pessoas que passavam apressadas a caminho dos seus afazeres, como se ainda fugissem da chuva que já deixara de cair ou andassem destreinadas de parar para apreciar o dia e desfrutar o que de melhor a mãe-natureza tem para nos dar.

Precipitei-me na direção da cómoda e arranquei da gaveta uma t-shirt, embrulhada no meio da roupa de inverno que me apetecia manter guardada num roupeiro escondido na arrecadação, até quando voltasse a abri-lo já nem me lembrar para o que é que servia.

Ouvi no quarto do vizinho de cima, o peso de alguém sentado numa cadeira a arrastá-la impiedosamente, fazendo-me desejar que viesse ainda mais calor para àquela hora já ter saído de casa em direção à praia mais próxima. E não sei por que motivo tinha de ouvi-los desviar os móveis, como se sempre que precisavam de mexer uma perna, com o ruído pretendessem assinalar a sua passagem.

Dei por mim a concluir que lá em casa ramos mais comedidos no barulho que fazíamos do problema que me afetava não podiam queixar-se os nossos vizinhos de baixo, nem mesmo quando eu estava atrasado para sair de casa e a minha mãe irrompia pelo quarto a recordar-me que havia de chumbar de ano, se a professora da primeira aula a que eu faltava não fosse tão complacente como ela, que só me desculpava de ser lento porque via o meu pai a fazer o mesmo.

Sem pressa daquela vez de ir para a rua, espreguicei-me e fui de novo à janela. Pus-me então a observar a estrutura dos prédios em redor. Eram blocos de argamassa e betão, de aspeto sólido mas displicentes dos acabamentos, a pensar em que quem iria neles habitar não tinha sensibilidade para apreciar os pormenores. O meu era feito nos mesmos moldes, porém, mais alto dos que os restantes e nele cabiam quatro inquilinos por piso, estando preenchido o espaço onde deviam estar as varandas, com enormíssimos estendais presos a roldanas onde cabia, a secar, roupa que poder-se-ia pensar pertencer ao dobro das pessoas que lá moravam.

Depois encheu-me de pena o voo solitário de uma andorinha cujo parceiro, macho ou fêmea, devia ter voltado mais cedo para casa. Tendia a sentir-me entontecido, de vê-la voando de cá para lá, indo longe e votando, possivelmente alargando a busca a todos os lugares por onde tinham passado, não a confinando ao bairro de onde só não saía à procura de um lugar melhor para viver quem não tinha, como ela, asas para voar.

Voltado de costas para a porta, não dei pela entrada sorrateira da minha mãe que trazia uma blusa leve a fazer adivinhar que o meu pai ainda estava em casa. Era ele quem lhe pedia que se vestisse como se, em vez de ser doméstica ou dona de casa, trabalhasse numa grande empresa e não desempenhasse menos do que o cargo de gerente. Bem penteada, a saia a combinar com o sapato e unha postiça de gel, mas sem qualquer maquilhagem, partindo do princípio de que seria um pecado tentar disfarçar qualquer traço no rosto de uma mulher atraente de trinta e poucos anos.

Se sinais de estar arreliada, mandou-me educadamente pôr de pé à frente dela, como se por comparação com ela se desfizesse o equívoco de achar que podia estar à sua altura. Separavam-nos vinte ou trinta centímetros mal medidos, mas comigo de ar aparvalhado ainda a pensar se a andorinha, que anuncia a chegada da primavera, já teria ou não encontrado o seu par, ela parecia muito maior.

Mais tarde, queixou-se-me o meu pai de não ter ligado ao que disse, mal saí do quarto para ir porta afora, quando me recomendou que vestisse um casaco porque ameaçava arrefecer e eu podia seguir pela berma da rua em que não batia o sol.

Não me lembro em que estava concentrado naquele instante, nem se meditava ainda no destino da andorinha que não encontrava companheiro, quando, em vez de ter respondido à minha mãe que me ia despachar, me pus a sorrir como se fosse parvo, achando piada a só muito raramente fazer aquilo que ela me pedia.