Quando a vida é como o Senhor de Matosinhos. E quando não é. – João Nogueira

Vida. Um palco. Um Rivoli cheio. Apinhado. Tudo escuro. Afinal, não. Há uma luzinha aqui e outra ali. Lá em baixo, tu. À espera de entrar. Sozinha. Costas direitas. Tesas. Comandante de ti mesma. Tu é que mandas. Entras. Mil olhos olham para os teus. Um par só. Quinhentos corações fazem exercícios de aquecimento. Quando o teu entra em campo, o deles começa a bater por ali fora. Há pessoas assim. Com um coração capaz de dar corda ao coração dos outros. Como se fazia com os relógios antigos.

Tive sorte. Calhou-me um desses na rifa. Calhaste-me tu. Sim, trata-se de sorte. Fecha os olhos. Agora imagina um senhor a vender cautelas. Imagina-o a gritar pelo treze. Ou pelo vinte e oito. Ou Bintóito, se for cá da terra.  Compras. Sai o treze. Ou o vinte e oito. Totobola, caramba! A vida andou à roda e saíste-me tu. Lotaria! Fujo. Com o treze na mão. Ou com o vinte e oito. Agora sou eu que grito. Já não é o senhor das cautelas. Corro muito. Muito mesmo.  Enquanto corro, nasce-me um filho, os meus pais riem-se para mim, o Porto marca nas Antas, os que me morreram ressuscitam e acaba a guerra em mim. Quando cessas fogo contigo, voltas a nascer. Somos mais fortes que a pedra, meu amor.

Sou homem. Como os outros. Hoje triste, amanhã contente. É sempre assim. Somos todos assim. Muito iguais. Muito pouco desiguais. Uns mais números, outros mais letras. Uns mais Londres. Outros mais Paris.

Mas andamos todos ao mesmo. À procura. Com lanternas. Com bússolas. Com mapas astrais. Há uns que descobrem. Outros que não. Por mais que escavem. Por mais telescópios que tenham. A diferença é essa.

A vida não tem tempo. Corre como uma perdida. É um jamaicano a fazer os cem metros nos jogos olímpicos. Um penálti à Eusébio. Um tiro à Lucky Luke. É um erro pensar que a seguir ao sábado vem o domingo. O tanas é que vem.

Quando descobres o tesouro, és abençoado. Por Deus. Ou por outra entidade. Não interessa. Guarda-o bem. Junto ao peito, se calhar. Nunca te esqueças dele. Um tesouro é para se pegar como se pega num filho. Com jeitinho. Colados um ao outro.

Viver também é resistir. Aliás, é,  sobretudo, resistir. Aos exércitos invisíveis. Aos papões que fazem excursões nos teus olhos. Às saudades. De casa. Dos que já não tens. Dos que nunca hás-de voltar a ter. Viver é resistir. Ao passado. Ao tempo em que eras de ferro. Eras o Super-Homem. Atiravam-te pedaços de kryptonite, mas tu desviavas-te sempre. A vida só aleijava nos joelhos. Trazias em ti o Verão. A pele vinha com sal. Do mar. Eras o maior. Crescia-te uma força nas le coq sportif, puxavas o braço atrás e rematavas mais alto que todos. Tinhas o dois cosido na camisola amarela. Mas eras o um. O primeiro. Viver é resistir. Àquilo que já foste. Aos filhos. Que te escorregam pelos dedos. Viver é resistir. À linha do Equador. Que divide o mundo em dois. A vida magoa. E já não é só nos joelhos.

Somos de guinadas. Quando são boas, pára tudo. É como se houvesse um Senhor de Matosinhos dentro de ti. Carrinhos de choque, farturas,  algodão- doce, montanhas-russas, carrosséis e um senhor sexagenário, em cima de uma carrinha, de microfone na mão, a dizer que se levares quatro pares de peúgas com losangos, ele oferece umas cuecas brancas da Lakosta. A vida vale por isso. Não pelas cuecas da Lakosta. Mas por todas as vezes que te põe a tremer. Por cada tremor de terra. Que te abala. Que te sacode. Que te faz correr para casa. Onde estão os teus. No quentinho. À lareira. Com uma mantinha nas pernas. A molhar o pão na cevada. E a sorrirem quando chegas. A maior ambição de um homem é ter uma casa. Essa é a maior ambição do mundo. Uma casa. Com pessoas lá dentro. A falar. A comer. A dormir. A rir. A chorar. A amar. A andar com um chinelo de cada nação.

Quem anda pela vida, anda com o credo na boca. Por mais samba que dance. Por mais Elis Regina que saracoteie. Só um louco não tem medo. De perder. De pensar que vai perder. Só um louco não tem medo de não ter uma casa. Com pessoas lá dentro.

Mas estas são as regras. De um jogo difícil. A vida.

Eu tenho o meu treze. Ou vinte e oito. Mais os outros que viajam na minha viagem. Na minha camioneta. Agarro-me a eles como quem se agarra à vida.  Vão todos comigo. No caminho, apanho-os. A todos.  Esticam-me  o polegar. Pedem-me boleia. E lá vamos. Todos. Aos solavancos, às vezes. Poucas. Subimos montanhas muito devagarinho. A seguir descemos vales quase em queda livre.  O que interessa é que vamos juntos. A rir. Na camioneta.

Que é a casa.

JoãoNogueiraLogoCrónica de João Nogueira
Pés bem assentes na lua

Visite o blog do autor: aqui