Na rua um transeunte entabula conversa com um cauteleiro, que apregoa alto e a bom som o que tem para vender.
CAUTELEIRO – Olha a Lotaria dos Reis! Vai andar à roda! É um milhão e duzentos mil euros! Quem quer?
TRANSEUNTE – Oiça cá! Não acha que isso já passou?
CAUTELEIRO – Os reis? Lá porque vivemos num regime semipresidencialista, sob a égide de um presidente que é eleito de cinco em cinco anos, ao qual presta contas um Primeiro-ministro que é eleito a partir da Assembleia da República para onde são eleitos duzentos e trinta deputados, isso não quer dizer que tenhamos de esquecer essa parte da nossa história.
TRANSEUNTE – Concordo inteiramente consigo, até demos a conhecer novos mundos ao mundo, mas referia-me à extração da lotaria que já foi. No entanto, pelo que vejo tem grandes conhecimentos de política e é apegado à monarquia. Não me diga que é militante do Partido Popular Monárquico?!
CAUTELEIRO – Nem desse, nem do outro.
TRANSEUNTE – O do Dr. Paulo Portas?
CAUTELEIRO – Não, senhor. O que foi mais popular nas últimas eleições porque teve mais votos, o PSD de Passos Coelho, embora haja outros a pensar que uma coisa implica o contrário da outra e por isso tenham ido para o seu lugar. Mas sabe uma coisa? Já não é a primeira pessoa hoje a dizer-me isso.
TRANSEUNTE – Que a extração da Lotaria dos Reis já foi?
CAUTELEIRO – Não, que os reis já passaram à história e agora é preciso olhar para a obra dos Presidentes da República.
TRANSEUNTE – Bem, assim de repente … só se for a do atual, o Cavaco Silva. Foi o que enquanto Primeiro-ministro mais estradas e pontes mandou construir nos seus mandatos. Se bem que Jorge Sampaio na Câmara de Lisboa também tenha mandado tapar uns buracos. Mas quem foi, algum republicano convicto?
CAUTELEIRO – Nada mais, nada menos do que, pelo menos, três candidatos às próximas eleições presidenciais.
TRANSEUNTE – Pelo menos? Quer dizer que não está certo do número?
CAUTELEIRO – O quarto era o Tino de Rans. Não tenho a certeza de que também seja. Mas não me pode levar a mal, não devo ser o único português que não o leva muito a sério. Deve ser por causa das caretas que faz e do jeito engraçado de dizer certas coisas.
TRANSEUNTE – Mas então, também não era nos outros que devia acreditar. É verdade que quem sempre dizem coisas engraçadas, mas quando toca, nas campanhas, a dizer mal uns dos outros, lá em casa achamos um piadão e fartamo-nos de rir. Mas diga lá, com quem é que esteve a conversar afinal?
CAUTELEIRO – Com o professor Marcelo …
TRANSEUNTE – Qual deles? O do PSD, o Rebelo de Sousa?
CAUTELEIRO – Claro. Do outro, o Marcelo Caetano já nem me lembro muito bem. E mesmo que fosse vivo e passasse por mim, jamais o reconheceria das raríssimas vezes em que o vi na televisão de lá de casa ainda a preto-e-branco.
TRANSEUNTE – Mas o que lhe disse ele? Cometeu alguma inconfidência? Ou simplesmente que a monarquia já faz parte do passado?
CAUTELEIRO – Não. Que o tempo dos cauteleiros como eu é que já tinha passado. Bem lhe tentei impingir, mas disse que já tinha comprado uma raspadinha na loja do chinês dali de baixo.
TRANSEUNTE – Vendem jogo ali? Não sabia que o Casino de Macau tinha uma representação em Portugal.
CAUTELEIRO – Que o negócio dos cauteleiros já era, percebi assim que o vi vir na minha direção com uma montanha de livros debaixo do braço e outros no saco de um hipermercado. Se até o negócio das livrarias de rua já deu o berro, quanto mais o meu, que é andar aqui a subir e a descer a rua ao frio e á chuva de um lado para o outro!
TRANSEUTE – Que mais ele lhe disse?
CAUTELEIRO – Nada, porque não sobrou tempo. Foi-se embora quando viu que eu já tinha parado à espera para falar comigo outro candidato, desta vez a bloquista Marisa Matias.
TRANSEUNTE – Naturalmente. Ela segue-o por todo o lado. É como na televisão. Quando ele acaba de falar vem desmenti-lo, não vão as pessoas pensar que ainda está na sua coluna de opinião televisiva e tudo o que diz é verdade. Agora está em campanha e é natural contar umas mentirinhas. Mas espero que ela o tenha deixado mais animado.
CAUTELEIRO – Nem por isso.
TRANSEUNTE – Não lhe comprou uma raspadinha?
CAUTELEIRO – Comprou, mas saiu uma premiada com quinze euros e logo ali tive de lhe dar todo o dinheiro que tinha feito até ao momento.
TRANSEUNTE – E não fez nenhuma promessa eleitoral?
CAUTELEIRO – Sim, prometeu que se vencesse agora, se recandidataria daqui a cinco anos. Mas até lá, já deve ter esquecido que prometeu nessa altura comprar-me pelo menos uma cautela da lotaria popular.
TRANSEUNTE – E quem mais apareceu, homem?
CAUTELEIRO – Aquele socialista que é mais abrangente, o Sampaio da Nóvoa. É um sujeito muito simpático.
TRANSEUNTE – Acha que vai ganhar? Se reunir o apoio dos comunistas na segunda volta, é um forte candidato.
CAUTELEIRO – Não creio. Em Portugal, os comunistas só teriam uma representatividade suficiente para garantir a vitória dele se viessem cá votar os militantes cubanos e parte substancial dos que residem na China. Gostava mais do tempo em que o PS em vez de três, apostava só num candidato para ganhar logo à primeira volta.
TRANSEUNTE – Ah, bom, já percebi que é um saudosista. Por isso ainda vende bilhetes para a lotaria que já passou.
CAUTELEIRO – Quem quer comprar a Lotaria dos Reis? Ainda tenho terminações para a Lotaria do Natal.
TRANSEUNTE – Apesar de tudo, estou a achá-lo pessimista. Então e da Maria de Belém em nome do PS, nada?!
CAUTELEIRO – Por acaso vi passar uma senhora muito elegante, com um ar muito distinto, mas pensei que fosse a futura primeira-dama de um candidato que pela cara eu não estava a ver quem era. Depois é que percebi que era ela, mas não tenho a culpa de que o marido é que andasse no meio das pessoas a distribuir beijos e abraços e a pegar nas criancinhas ao colo.
TRANSEUNTE – Você é engraçado, amigo, mas não se candidate senão é dos que ninguém leva a sério. Dos mais conhecido, só ficou a faltar o Henrique Neto e aquele da CDU, o ex-padre da Madeira Edgar Silva.
CAUTELEIRO – Confesso que não lhe pus a vista em cima.
TRANSEUNTE – Será que anda lá para a Madeira a fazer campanha ou já desistiu a favor do candidato de esquerda que há-de disputar a segunda volta com o Professor Marcelo Rebelo de Sousa, que já pensa ter estar apurado?
CAUTELEIRO – Se assim for, não creio que valha a pena. A menos que a aposta seja no Tino de Rans. É que para concorrer em pé de igualdade com um candidato popular, nada como escolher outro que seja também muito conhecido, e depois da sua participação nos realitys shows da TVI, há-de convir que o mocinho é sem sombra de dúvida o mais popularucho de todos.
Critica actual a todos os candidatos à presidencia da Républica duma maneira muito engenhosa e criativa na boca de pessoas do povo Gostei bastante desta crónica satirica e bem construida como sempre