Retrato de um novo-pobre enquanto jovem

Tirado a cores, fica gravado, através da lente de alta definição de imagem de um moderníssimo smartphone, numa pasta de arquivo a que pomposamente chamaram galeria, bem distante do tempo em que com recurso à velhinha câmara no modo a preto e branco, se tiravam as fotografias para mais tarde pormos a revelar.

Nove da manhã. Toca o despertador no quarto semiobscurecido e Joana desperta, mas ainda sonolenta já está com vontade de se virar e coçar as costas ao marido que naquele momento está retido na casa de banho a enviar mensagens codificadas aos amigos através de uma aplicação da Internet.

Ela sabe que faltam escassos quinze minutos para os dois filhos de sete e nove anos entrarem na escola, mas conta com a benevolência da professora que dá aulas a ambos, porque o mais velho já chumbou, que nem marca falta de atraso a nenhum, mesmo depois da chamada, nem assinala dirigida à assistente social que presta apoio ao agrupamento escolar, a falta mas de estatuto moral àquela mãe para educar convenientemente as duas crianças.

Antevê-se um dia de sol, pela luminosidade que bate nas persianas, que emana uma luz natural que seria suficiente para ver ao espelho que tem duas pesadas olheiras. Joana tem os estores corridos, mas tanto pode ser para tapar a entrada do calor que começa a fazer-se sentir, como para evitar que, vindo da rua, lhe entre pela janela o sorriso esfusiante de alguma criança que se dirija à escola ou o passo alegre de algum adulto que se encaminhe para o emprego.

Contrariada, a mulher liberta-se do lençol e levanta-se. Ergue-se e, apesar de jovem, nota-se-lhe na zona do baixo-ventre não coberto pela t-shirt, a pele enrugada e flácida, provavelmente da ausência de cuidado na recuperação dos partos que ocorreram quase sucessivamente, por descuido na contagem do intervalo dos dias em que devia ter tomado a pílula.

Porém, não era apenas de tão urgentemente recuperar a silhueta, que Joana precisava e em que já devia ter investido algum do tempo que uma mulher, quando se trata de cuidar da beleza, nunca dá por mal empregue.

Toda despenteada, tinha o cabelo sujo e tão desgrenhado, no meio do qual, no caso de ter piolhos, eles se veriam em grandes dificuldades para achar uma porta de saída, que lhes permitisse saltitar daquele emaranhado de cabelos para fora.

O marido tinha saído e com ar assustado, de relógio na mão, uma criança veio pedir-lhe que se despachasse porque estavam atrasados. Joana serviu-lhes de pequeno-almoço, bolachas recheadas de baunilha e um naco de pão, que enfiaram no bucho e lá foram conseguindo engolir, enquanto houve, para empurrar, leite com chocolate no pacote que colocou diante de cada um deles.

Depois vestiu-se e saiu à rua mais despenteada do que antes, mas podia ser por causa da ventania, que não lho deixava assentar, pelo menos até pelos próprios meios ter tentado fazê-lo, passando com um pente onde no mínimo devia passar uma escova.

Despediu-se dos filhos à porta da escola, com um aceno. Sorriram, da última coisa que valeria a pena ela recordar-se à noite, se em casa o marido lhe perguntasse o que de útil tinha feito nas últimas vinte e quatro horas.

Lembrou-se de passar num balcão de atendimento da Segurança Social, onde há mais de um mês tinha pendente um novo pedido de rendimento social de inserção. Com os nós dos dedos esfregou os olhos, à laia de servir para desembaciá-los da visão de algum mau pensamento. O que lhe soava ao contrário, era passar em casa de uma amiga e levar de aluguer um bebé de colo com que passaria adiante de tantas pessoas, quantas as que estivessem paradas há horas na fila à espera.

Como moravam afastadas, separou da carteira dinheiro para um táxi e enfiou-se no primeiro em que o motorista não lhe parecesse que tinha o ar zangado de quem tinha acabado de perder mais um cliente para a Uber. Arrancaram e pouco depois estava a bater à porta de Carolina, num prédio assente numa zona onde teria dificuldade em estacionar quem levasse carro.

Carolina era brasileira e também estava desempregada, mas desenrascava-se a fazer uns biscates de esteticista em casa de umas senhoras conhecidas umas das outras que passavam palavra garantindo que trabalhava bem e barato. Carolina retribuía em simpatia e, levando o tempo que demorasse, esforçava-se por fazer o trabalho com grande esmero, próprio de quem no final iria com certeza receber o dobro ou o triplo do preço que tinha fixado.

Carolina tinha o bebé deitado numa alcofa. Estava a dormir na posição lateral, mas se a tivesse visto aproximar-se, ter-se-ia preferido deitar num berço só para poder esconder-se debaixo do colchão, para ela entender de uma vez por todas, que se tinha cansado de andar de um lado para o outro com ela, sempre que precisava e resolvido ir embora, para jamais voltar àquela casa que para si tinha todo o conforto menos o de um lar.

Joana era justamente o tipo de pessoa de que, no seu delicado entendimento, não gostava mesmo nada. A mulher falava exaustivamente e ele se pudesse mandá-la-ia para longe. Quando abria a matraca, Joana não mais se calava, como se não a atingisse o receio de os outros poderem achá-la aborrecida e hedionda.

Encantada, Carolina achou a ideia estupenda, tão boa como a de alguém lhe oferecer uma capa nova para o smartphone que tinha adquirido. Já que a amiga lá ia, podia poupar-lhe o tempo e o trabalho da deslocação, e requerer impressos para pedir um acréscimo ao abono de família dos filhos, que já mal chegava para a despesa dos transportes com as idas semanais ao Banco Alimentar donde levava para casa comida suficiente para manter a despensa sempre cheia.

Quando entrou na Loja do Cidadão em Odivelas, o balcão da Segurança Social estava apinhado de gente. Joana suspirou e ao bebé devia apetecer dizer que não se importava de esperar, prevendo que era a única forma de efetivamente ela ficar chateada. Logo depois, já só lhe deu vontade de chorar, quando se formou uma enorme onda de solidariedade a favor de Joana, que chegava à loja contígua da Vodafone, por se ter queixado de falta de dinheiro para poderem ter ido consigo, os outros dois filhos menores que tiveram de ficar, coitadinhos, sozinhos em casa, sem ninguém para lhes dar o almoço.

Deram-lhe a vez, uma idosa que se apoiava num par de canadianas, um senhor que tinha isso para a fila antes das sete e uma grávida no fim do tempo de gestação de gémeos, que não haviam de gostar que um dia a mãe lhes fizesse o mesmo, deixando um sozinho em casa quando fosse brincar com o outro no parque.

Mais tarde, e com o bebé já entregue a dormir, desfrutando do merecido descanso, de regresso a casa, Joana escondeu do marido à pressa, uma convocatória do Centro de Emprego da área, a intimá-la para ir fazer uns cursos. Já tinha feito dois e não se importaria de riscá-los do currículo, uma vez que do de Alemão apenas aprendera a pronunciar corretamente a frase com que maçava a formadora perguntando diariamente quanto tempo faltava para terminar a aula.

O marido, natural de Elvas mas filho de alemães, também estava desempregado. E juntos lá iam sobrevivendo, fazendo contas às sobras a meio do mês para ver se o dinheiro ainda chegava até ao final, mantendo entre ambos a dúvida sobre qual dos dois precisaria em primeiro lugar de arranjar emprego.

Herbert era marceneiro de profissão, mas a serração que lhe dava emprego, por dívidas acumuladas ao Fisco e á Segurança Social, tinha entrado no estado de insolvência e ele, assim como quinze companheiros, tinha sido jogado no meio da rua, como um dejeto com o qual, se nos deparássemos, prontamente desejávamos que o tivessem deitado num outro lugar, para não estar ali a atrapalhar.

Joana gostaria de ter sido médica de pessoas ou animais, mas a predileção pela carreira de veterinária deu lugar à da advocacia, porque a partir da adolescência passou a preferir aderir à causa de através das vias legais, ajudar as pessoas a mudar o mundo. Acabou, porém, como aprendiz de coisa nenhuma, porque abdicando dos estudos aos dezasseis anos para ir trabalhar na loja de roupas de uma pessoa amiga, deu a entender que só ajudaria a fazer deste mundo um mundo melhor, se, baseadas no seu mau exemplo de não perseverança, outras jovens da sua idade percebessem que caminho não deviam seguir se quisessem ter acesso a um futuro risonho.

Já era tarde, quando ligou o telemóvel, que tinha estado de bateria descarregada, e deu conta de uma mensagem aflita da amiga, que recorria a si por não ter mais ninguém a quem pedir auxílio. Com cólicas, o bebé em casa não parava de chorar e precisava que Joana lho levasse ao médico porque como era mãe solteira, com outra criança em casa estava impossibilitada de sair. Joana leu e releu a mensagem, depois, porque não lhe apetecia sair de casa àquela hora, sem remorsos de qualquer espécie apagou-a e desligou de vez o aparelho. Foi ter com marido à sala, onde assistia a uma partida de futebol, e com o visor às escuras disse-lhe que estava avariado. Fingiu tão convincentemente, que o marido não só acreditou, como lhe passou para a mão cem euros, a fim de ir a um centro comercial mandar arranjá-lo logo na manhã do dia seguinte.