Rita, anda ver o verão! – Cap.17

O Coronel Valagão apoiava-se com dificuldade no puxador da porta exterior do prédio de Rita. Tinha os braços cobertos de cicatrizes expostas que funcionavam como um bálsamo que lhe dava força para se manter de pé. A restante vinha da ajuda de um par de canadianas que segurava à custa de dois braços fortes.

Era um homem entroncado, com voz de comando altiva que contrastava com a débil autoestima resultante de ter-lhe sido amputada a perna direita após ter pisado uma mina terrestre em Angola, cujos estilhaços ainda o atingiram na vista e quase cegaram para que não visse o estado lastimável em que ficou. Regressou a Lisboa num avião que sobrevoou o território em guerra antes de ser declarada independência e, com pena sua, foi considerado inapto para o serviço militar, até para missões de paz em que o risco de morder de tédio era superior ao de ser atingido por uma bala inimiga.

Rita atravessara a rua a galope, mas ajudara-o a empurrar a porta e entrara no prédio praticamente de gatas, prostrada pelo esforço despendido numa corrida em que não havia nenhum concorrente à sua frente para alcançar.

Ao desgostoso coronel, agora com setenta anos, a permanência em África fora encurtada, bem como a esperança de uma vida mais confortável no regresso à metrópole. Valagão recorda o incidente vagamente. Da sua memória mais recente recorda-se de muita gente lhe pedir que narrasse o que tinha acontecido.

Chovia e a coluna militar que comandava esperava-o na parada do aquartelamento para receber instruções precisas acerca da missão. Os homens endireitaram as costas e fizeram continência ao oficial que ia passá-los em revista para ter a certeza que estavam à altura do fardamento escolhido para esse dia. Era o camuflado onde ostentava a maior coleção de medalhas que um militar, que nunca tinha participado em missões de guerra, podia exibir aos seus soldados. Ao seu lado, o oficial de mais elevada patente que visitara o acampamento desde que ele lá estava, trajava adequadamente uma farda castanho-esverdeada que o camuflava, como a um camaleão que saía para o mato em busca de alimento e tentava passar discreto aos olhos dos seus predadores.

Valagão era ainda Capitão, mas perto do Tenente-Coronel Reis sentia um peso acrescido, que tanto podia ser o da responsabilidade pela missão confiada, como o de estar já a imaginar-se com a medalha de mérito ao peito, com que seria agraciado se tudo corresse a contento dos seus superiores. O que desfilava ao seu lado naquele momento, tinha um ar enfadonho, aparentando estar aborrecido e somente à espera da ordem de saída do pelotão para poder regressar à cama e ficar novamente alegre.

Passavam minutos das cinco da manhã, quando do aquartelamento improvisado no mato, que consistia num conjunto de tendas de lona cercadas por uma paliçada, um grupo de homens resignados por terem de viver no meio da selva num país que só sabiam apontar no mapa para medir a distância a que estavam de casa,  saiu numa missão que temiam que fosse a derradeira para alguns deles.

Na barraca maior, a que chamavam caserna, os que não pregaram olho tinham passado a noite a falar com saudades do tempo em que não se conheciam uns aos outros. Nessa altura estava longe o espectro da guerra. Afastados estavam agora da capital daquele imenso território, tanto que por vezes tinham a sensação de que combatiam num país vizinho, como a Namíbia ou o Zaire.

Numa repentina variação do estado de espírito, o Capitão Valagão tinha um ar circunspeto, que uns classificaram como aquele que poria se tivesse de dar-lhes uma má notícia. À medida que avançavam desbravando caminho à catanada por entre o mato desordenado, estavam cientes das dificuldades que ainda enfrentariam e, por isso, ansiosos por saber quanto tempo ainda iam caminhar à chuva, além do motivo por que um militar de tão elevada craveira não submetia também aos seus, os desígnios do tempo que convinha mudar para melhor.

O  negrume da selva adensava o mistério que se estendia para lá da curta distância até onde a vista deles alcançava. O forte aguaceiro que desde a madrugada teimava em não parar, transformara o terreno num lodaçal do qual, se tivessem de fugir à pressa, nem com a força de todos a empurrar em simultâneo, conseguiriam retirar o jipe onde levavam os mantimentos que convinha manter secos, até virem as ordens, a que obedeceriam sem pestanejar, de abandonar o local onde tinham ido destruir o último reduto dos rebeldes que com ataques constantes minavam a moral dos jovens militares portugueses presentes na guerra colonial.

Era o primeiro pelotão que avançava tão longe nas hostes inimigas e dele se esperava que, ao vê-los, os soldados rebeldes pensassem que desde Luanda, a capital, já nenhuma zona lhes pertencesse. Tinham acabado de entrar numa clareira, livrando-se da horda de macacos que lhes atiravam uma espécie de bolotas verdes, as quais não eram tão duras que ameaçassem amolgar-lhes os capacetes, mas que disparadas de uma arma eram suscetíveis de matá-los, quando avistaram a esvoaçar um bando de aves que podia alertas da sua presença. Seguindo as indicações do Capitão, aventuraram-se num caminho alternativo ao dos batedores que seguiam na frente para garantir a segurança do grupo, pondo-o a salvo de qualquer surpresa desagradável, até porque há na selva mais perigos à espreita do que olhos em número suficiente para vigiá-los.

Foi quando soou um forte estrondo e, do céu, as aves devem ter pensado que um caçado tinha apontado e disparado um canhão na sua direção, pois rapidamente sumiram da vista de todos.

Os homens estavam conscientes do perigo que enfrentavam. Na palestra que antecedeu a partida, feita na presença de todos, a quem o Tenente-Coronel Reis pediu o máximo empenho e coragem, foi tão esclarecedora que, no final, além de não contar com a oposição de ninguém, não suscitou quaisquer dúvidas acerca da necessidade de ser levada a cabo. E se no seu decurso mais questões não foram colocadas, ele prontamente ele os considerou a todos devidamente esclarecidos. Já o oficial se tinha na sala do Comando de Operações com o Capitão Valagão e outros subordinados, que de tal forma se renderam aos seus conhecimentos técnico-táticos que, em consonância acharam que se o mesmo fizesse o inimigo perante tal demonstração de sabedoria, em breve terminaria a guerra e nem seria preciso nenhuma das partes voltar a disparar um único tiro.

Após o violentíssimo rebentamento de uma mina terrestre de elevada potência, o corpo do Capitão Valagão, que se afastara por instantes do grupo para urinar, fora catapultado para longe, sacudido por uma violentíssima explosão que o levou a aterrar estrondosamente numa da cama feita de ramos partidos à sua passagem. Gravemente ferido, levado para o acampamento foi preciso estacar a hemorragia e só, quando se achou que estava apto para viajar, é que foi transportado para a capital e de lá para Lisboa, num voo só de ida, como fora o da explosão que não lhe permitiu voltar intacto ao mesmo local onde em má hora decidira pôr os pés.

Sucederam-se as honras militares, com a previsível passagem à reforma e em menos de quinze dias foi agraciado pelo Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas com uma comenda mediante a qual passou a auferir de uma pensão vitalícia em reconhecimento aos seus atos de bravura. Ao cabo do tempo de guerra, fez uma passagem à situação de Reserva pacífica, constando na caderneta que estava incapacitado para desempenhar as funções previstas para o cargo, resultante de ter perdido um membro inferior em defesa da Pátria, perna de que, no entanto,  sentia menos falta do que de ter um grupo de homens armados em quem mandar.

Rita auxiliou-o a subir a primeira vintena de degraus, lamentando que o prédio ainda não possuísse elevador e, até chegarem ao andar em que ele morava, ter tempo não só de escutar histórias dos primeiros dez anos de vida mas praticamente a trajetória de vida até à data do fatídico acidente.

De ar impaciente, o Coronel Valagão apoiava-se sobre o lado direito e Rita pôde ver-lhe pendurada num cordão de ouro o pescoço, uma medalha de marfim esculpida da presa esquerda de um elefante capturado por ele, que um artífice seu amigo reduziu ao tamanho de uma moeda de dois euros.

No lugar da perna amputada e do pé que não era o seu, usava uma prótese e não fosse mancar, ninguém se aperceberia da usa existência. Quem se queixava do barulho que ele, nas noites de insónia, fazia a arrastá-la no piso de madeira da casa, era a porteira do edifício. Mas essa era tão-somente uma das mil certezas que ela tinha. No invólucro da sua estrutura óssea, cabia essa e outras situações de que não se coibia de apresentar queixa aos demais inquilinos. Era uma mulher de tantas convicções, que todas muito apertadinhas, mal cabiam no invólucro que constituía o seu corpo disforme. Media um metro e cinquenta e quatro por oitenta e dois quilogramas de peso, e se não era este o peso que lhe convinha para ter uma figura esbelta, muito menos serviria para desfrutar em pleno de uma vida saudável, com menos reumático e queixas de dores nas articulações.

Todavia, fora extremamente elegante na juventude que se prolongou até sair de casa dos pais para casar aos trinta e consta que reduziu a cacos os corações apaixonados de muitos homens que, sem escrúpulos, varria com os pés para debaixo da alcatifa. Presentemente entre ela e o Coronel na Reforma, havia um ódio de estimação motivado pelas trocas de acusação em relação a quem fazia mais barulho no prédio e se se desse o caso de se cruzarem um com o outro na rua, viravam a cara para o lado, quando o que deviam fazer era levantar a cabeça e olhar em frente, na mesma direção em que olharia uma pessoa que, se tivesse mais em que pensar, nem perderia tempo a olhar para o ar zangado de ambos.

Na escada havia vasos com bonitas flores, que emanavam um cheiro agradável em que reparavam as pessoas que na rua não tinham perdido tempo a cheirar as que proliferavam nos jardins e achavam-nas tanto mais bonitas quanto mais estimada era a dona dos vasos onde estavam plantadas. Numa roseira, via-se uma rosa bem cuidada, que seria uma espécie de oitava maravilha se perto dela houvesse outras sete que merecessem o epíteto de flores de encantar.

Na despedida, ficou patente que pela jovem e pelo Coronel Valagão estavam bem representadas duas gerações de pessoas que, a darem-se tão bem como eles no mundo cá fora, fariam do mundo certamente um lugar mais pacífico para viver. E já tinham sumido os sinais iniciais de tédio, embora permanecesse aborrecida de carregar um saco, que apesar de não estar pesado, já se lembrara de pedir gentilmente ao homem que lho segurasse.

Para abrir a porta, o militar na reforma amparou-se na mão dela que, por ser segura, valia mais do que uma bengala em que se pudesse apoiar, nem que tivesse um cabo de platina cravejado de diamantes e entrou.

(Continua)