Rita, anda ver o verão! – Cap.19

Em face de ser ainda segunda-feira e faltarem quatro dias para o fim-de-semana, que era quando, de manhã à noite, a mãe lhe perguntava se tinha todos os trabalhos de casa feitos, Rita apressou-se a corrigir a mãe, que entrou acompanhada de Roberta, a filha mais nova do casal que diligentemente lhe carregava a pasta de couro, como se fosse a aluna mais aplicada da turma que quisesse cair-lhe em graça.

O lar onde moravam não era uma casa luxuosa, onde importaria levar os colegas da escola para não duvidarem de que não eram contrafeitas as roupas de marca com o logotipo de um lagarto que compravam na loja especializada de um Centro Comercial.

Eram oitenta metros quadrados em quatro assoalhadas, cozinha e casa de banho, com vista para um parque de estacionamento. Os tetos altos, que tinham sido pintados recentemente, eram de um tempo em que os prédios não cresciam muito em altura na cidade de Lisboa. Nas chamadas avenidas novas, que compreendiam a zona desde a rotunda do aeroporto até à praça do Chile, passando pelo Areeiro, os edifícios tinham no máximo cinco andares e constituíam as honrosas exceções os de cave ou subcave que se começavam a contar a partir do nível abaixo do solo.

Os mais antigos não eram contemporâneos do mortífero terramoto de mil setecentos e cinquenta e cinco, mas talvez tivessem em comum com os do século dezoito a necessidade premente de sofrerem obras, não só nas fachadas mas nos pilares de sustentação que os  impedisse de cair ao primeiro abalo que voltasse a sentir a capital.

Extenuada pelo calor, a mãe de Rita pensou em tomar um duche de água bem quente que lhe relaxasse os músculos doridos e retemperasse as energias a tempo de ir preparar o jantar para toda a família. Despiu-se na casa de banho, deixando à mostra um peito flácido do qual nunca recuperara plenamente de Roberta ter-lhe sugado a fonte de onde provinha o leite.

Torceu o nariz ao cheiro nauseabundo que emanava dos canos vazios que o canalizavam diretamente da fossa do prédio que se localizava no hall das arrecadações. Ao espelho, viu a única pessoa capaz da insensatez de concordar com o marido em comparticipar nas obras das áreas comuns do condomínio propostas pela administração que acabara de ser eleita para os próximos dois anos. Só ela estava à altura de compreender a angústia que a levaria a confessar-se arrependida de ter gastado dinheiro inutilmente numa obra que foi incapaz de resolver o problema dos constantes entupimentos que a todos incomodavam há meses.

Pensando que o marido teria algum perfume escondido no armário, além da colónia baratucha que usava, pegou no primeiro frasquinho que apanhou junto aos acessórios da barba e deu uma esguichadela, pulverizando o ar que se tornou irrespirável para quem não usasse uma máscara.

Não foi preciso esvaziá-lo para perceber que o seu conteúdo era impróprio para consumo. Imediatamente pegou num que o marido lhe dera e, enquanto o despejava para cima de si, só lamentou que, em vez do mais pequeno e barato que encontrou, o marido não lhe tivesse oferecido o maior que havia na loja para poder gastá-lo à vontade.

Continuando a despir-se, livrou-se da roupa que ficou jogada a seus pés como despojos de guerra, depois de ter travado uma autêntica batalha com a saia de terylene para conseguir desapertar-lhe o fecho de correr que sempre se encravava quando menos esperava.

Com a água quente a correr da torneira,  livrou-se do suor que lhe cobria a pele como se fosse a mais fina camada de células finas que compunha a epiderme.

Se pudesse, deixar-se-ia esquecer das horas no banho, levando com o jato de água nas costas enquanto cantarolava o refrão das canções que infelizmente não conhecia tão bem como ao marido que sabia que chegava a casa cedo e adorava jantar à hora do principal noticiário da RTP. No fim, aplicou creme hidratante no corpo e vestiu um vestido de andar por casa, que tirando ser prático e leve, em nada favorecia a silhueta de uma mulher elegante como ela.

Quando terminou a formatura na Escola Superior de Educação de Lisboa, a mãe de Rita tinha menos vinte anos do que agora e muito mais em que pensar do que em voltar depressa para casa quando acabavam as aulas. Adorava andar nas compras, se bem que não podia dar-se ao luxo de perder a cabeça comprando algum artigo mais caro, porque com a parca mesada recebida dos pais, no fim do mês mal podia ir ao cinema com o que sobrava de sair para lanchar com as amigas.

Travou conhecimento com o marido, na festa do vigésimo quarto aniversário em casa de uma amiga, que os convidou para estar na companhia dos amigos, mas que continuou sozinha porque de tal maneira eles tinham aspetos da personalidade em comum que passaram a tarde dedicados um com o outro a falar de assuntos que só a eles interessava.

Começou a dar aulas numa escola do Ensino público ao tempo da antiga quarta classe, onde os piores alunos somavam erros nas provas de Português e a Matemática, faziam contas ao que podiam ter aprendido se se tivesse esforçado um pouco mais.

Da sua primeira turma não guarda saudades. Era uma classe mista de meninos e meninas de seis anos que entravam para o primeiro ano sem nunca se terem visto, mas que ainda antes das férias da Páscoa ainda se distraíam tanto na sala a conversar que só os nomes uns dos outros é que não era preciso ela repetir porque os sabiam de cor e salteado.

Catarina era calada e só respondia á professora quando era solicitada a fazê-lo, mas uma das mais faladoras quando tocava a distrair os colegas que estavam sempre mais interessados em escutarem-se uns aos outros, do que a matéria que levava a professora à sala de aulas. Longe de ser um caso isolado, o de Catarina, enquanto aluna, era tanto mais grave quanto maior era a capacidade que exibia de surpreender tudo e todos, como quando aprendeu a ler em menos de metade do tempo da média da turma, o que era excelente em comparação com os colegas mais atrasados que necessitaram do dobro do tempo.

Para promover o gosto geral pela leitura, a professora montou uma minibiblioteca a um canto da sala de aulas, numa estante onde eles eram arrumados por ordem alfabética e, em função da avaliação no final de cada período que fazia de cada aluno, decidiu oferecer-lhes livros para lerem em casa. Todavia, não contou com um pequeno contratempo. Em vez dos melhores, teve de se contentar em premiar os alunos que estavam mais atentos ao que dizia. Os outros, por entre o barulho que faziam, sem nunca terem percebido que havia um prémio para reclamar, jamais poderiam ter aparecido a reclamá-lo e os livros foram todos entregues sem que aos que tinham tirado as melhores notas fosse dado algum.

(Continua)