Robin Hood de regresso ao palco dos sonhos

O anúncio de um concurso de tiro com arco e flecha no castelo do Príncipe João, fez-me ter novamente vontade de participar em torneios, que habitualmente ganhava, só não sabendo se até acertar em cheio no alvo precisava de disparar todas as setas ou consegui a fazê-lo logo à primeira.

Há muito que na floresta de Nottingham não se via um tão numeroso lote de bons atiradores. Além de mim, havia o João Pequeno, Will Scarlet, Allan Dalle e até Frei Tuck, o frade comilão que tanto repartia ensinamentos pelos mais jovens e inexperientes, exibindo a forma ideal de pegar no arco, como pelos nossos cozinheiros, ensinando-lhes a forma correta de temperarem a carne de borrego que era a sua favorita.

À época, eu era um concorrente respeitado nesses torneios, que se realizavam um pouco por todo o lado e serviam para pôr à prova a destreza dos participantes, ainda mais por quem me reconhecia pelo nome de Robert Locksley, proprietário de uma grande parte das terras de que o Príncipe João indevidamente se apropriou, em nome do poder de que foi investido pela nobreza que ficou a apoiá-lo, após a partida do Rei Ricardo que, por tempo indeterminado, se deslocou para o oriente acompanhado de um exército com os homens da maior confiança para ajudá-lo a combater os infiéis.

Ricardo, Coração de Leão, que governava a Inglaterra num tempo em que à injustiça tinha declarado guerra, era tão poderoso que esgrimia forças com qualquer adversário, que derrotava e no final de cada batalha só estava à altura de poder ordenar aos seus súbditos que lhe prestassem vassalagem.

Naquela tarde, pedira a Frei Tuck que discretamente nos transportasse na sua carroça, a João Pequeno e a mim, até às imediações da muralha exterior do castelo, onde, na feira que todas as semanas organizavam ao seu redor, talvez me bafejasse a sorte e conseguisse avistar Lady Miriam, a quem gostaria de começar por dedicar a participação no torneio, que só daria por vencido se, com uma seta igual à lançada por cupido, fizesse pontaria ao alvo e para felicidade de ambos lhe acertasse em cheio no coração.

Will e Dalle tinham ficado de prevenção num ponto estratégico do caminho, com cavalos arreados prontos a serem montados se precisássemos de fugir dali depressa. Por debaixo do hábito, devem ter tremido as pernas do frade, à passagem de um grupo de lacaios do Príncipe João armados de lanças, que não seria por envergarem um fardamento diferente que alguém haveria de saber distingui-los dos soldados que antes tinham prestado brilhantes serviços ao rei.

Para ninguém me reconhecer na pele de Robin Hood, o famoso fora-da-lei que rouba aos ricos para dar aos pobres, trazia vestida uma capa que me ocultava as vestes, tapando-as tão bem como à roupa de baixo que o meu amigo Tuck trazia vestida, cobria o seu hábito de frade bom samaritano que o impedia de continuar a exibi-las em público desde que enveredou pela vida religiosa.

O nosso cavalo não era tão novo como aqueles ao pé dos quais ficou, encostado a um bebedouro que o não deixaria ter sede até voltarmos, mas mesmo assim destoava menos entre os da sua espécie do que nós no meio da multidão, pois caminhávamos tentando não dar nas vistas mas com Frei Tuck cumprimentando e abençoando as pessoas, como se quisesse que pensassem já ter valido a pena sair de casa só pelo facto de tê-lo visto.

Miriam trazia o semblante carregado. Observa circunspecta a banca de tecidos de um feirante, junto da aia que nos reconheceu de imediato mas ficou em silêncio para não chamar sobre nós a atenção, num gesto que seria em primeiro lugar compreendido pela mulher que estava ao seu lado. Miriam era uma jovem de apenas vinte e dois anos. Trazia a cabeça coberta por um lenço ornado de uma rosa que não lhe retirava a majestade, mas ao cabelo, penteado com uma trança comprida, não faltava o cheiro de todas as flores que as rainhas mais gostavam de cheirar. Era baixa mas possuía a compleição física das mulheres que para atraírem sobre si os olhares dos outros não precisam de se colocar em bicos de pés.

Assobiei ao de leve para Tuck que entendeu de pronto para onde eu queria que olhasse. Rodou a cabeça e, antes de abrir a boca, demorou-se a admirá-la, como se temesse eu pô-lo à prova perguntando de seguida alguma coisa sobre a jovem, para ter a certeza de que lhe tinha dedicado a atenção que ela merecia. Perguntou-me se eu não ia falar-lhe, mas não respondi logo porque só parei de assobiar quando percebeu que não era da mulher que o acompanhava que falávamos, um sujeito lingrinhas que parara a desafiar-nos como se tivesse o dobro ou o triplo do tamanho.

Percebi pelo traje feito de boas fazendas, que devia ser da linhagem de algum nobre importante a quem o Príncipe João devesse favores, pois devia estar convencido de que com a ajuda de dois dos soldados dele que lhe faziam guarda, podia afrontar-me, mesmo sendo eu mais alto, mais forte, apresentar-me melhor nutrido do que ele e ser, pelos vistos, mais prudente, uma vez que não querendo confrontos naquele lugar e àquela hora, resolvi ignorar a provocação e reagi com um pedido de desculpas ao facto de ter passado por mim e dado um empurrão com o ombro, que apenas me aproximou mais do frade.

Fingi que não o ouvi chamar-me cobarde, tão alto que em seguida esperei ouvi-lo ofender-me chamando-me surdo. Já nessa altura se abrira à nossa volta um círculo, delimitado pelas pessoas que nos observavam, algumas lançando apupos aos soldados que vieram na minha direção empunhando lanças em riste, mas sem querer interferir a meu favor, para não influenciarem o desfecho final da contenda em favor de nenhuma das partes. Frei Tuck colocou-se diante dos homens armados que prontamente o prenderam pelos braços, como se não fosse pelas pernas que deveriam tê-lo prendido em primeiro lugar para evitarem uma fuga que surgiria no caso de lhe ser dada uma oportunidade.

Perante a ameaça das armas afiadas, apontadas ao seu pescoço, temi pela vida do meu fiel amigo. Que falta me faria a sua amável companhia e os seus comentários graciosos à minha forma de fazer justiça, assaltando e privando dos seus valiosos objetos, os mais ricos, para correr a distribui-los aos mais pobres, que melhor uso do que apenas o de servirem de ornamento, dariam à prata e ao ouro de que eram feitos os colares e braceletes que nessas ocasiões iam parar à minha mão.

Antes que se aproximassem mais guardas, tornando ainda mais desigual uma luta que eu pretendia travar rapidamente, empunhei a minha espada e atirei-me a eles, que desataram a fugir, antes de alguém vir socorrê-los que pudesse testemunhar o seu fracasso e, dali em diante, torná-lo objeto de troça. Despedi-me de Lady Miriam esboçando um sorriso, com um aceno, à velocidade vertiginosa de um relâmpago que ninguém via mas, de cor, sabia as consequências de acertar numa árvore provocando um incêndio.

Adiei a declaração de amor a Miriam, que olhou para mim com pena de não levar comigo e com o frade, a aia rezingona, para poder vir da próxima vez sozinha à feira. Amo-a e ao amor não abdico de torná-lo público. Abdico de uma boa luta, de vencer um torneio e mesmo dos comentários jocosos de Tuck à minha indumentária, por causa da pluma de ave espetada no chapéu que ele diz ter o inconveniente de estar a sinalizar para onde devem apontar os que me fazem pontaria. Só não renuncio a viver com ela no palco dos sonhos, que é nas minhas antigas terras, o castelo onde habitava, isto no dia em que regressar das Cruzadas na Terra Santa, também para legitimamente reclamar o que é seu, o saudoso Rei Ricardo, coração e espírito indomável de leão.