Robinson Crusoé na ilha do tesouro com os piratas das Caraíbas

Londres. Ano da Graça do Senhor de mil, setecentos de dezanove. Chamo-me Crusoé, Robinson Crusoé e de mim hão-de lembrar-se nas gerações vindouras, todos aqueles que associarem à notícia do terrível naufrágio de um navio em alto mar, o nome de um homem que se salvou para relatar em livro como as coisas aconteceram.

Com uma carga considerável de víveres a bordo, zarpámos da cidade portuária de Portsmouth em direção à costa ocidental de África, onde, na feitoria de um português de nome Nuno, segundo um contrato assinado há várias semanas, ele tinha para me entregar um lote de escravos em troca das armas de fogo que eu transportava, mas obviamente não para que aqueles que ainda lá ficavam as aprendessem a usar contra si.

Partimos numa manhã de sábado, sem nevoeiro, a uma hora a que já podíamos saudar o sol que entretanto tinha nascido. Em poucos deias, falando com as pessoas certas, fretara o navio e contratara a tripulação, que de dia gostava de ver trabalhar no convés, para de noite, enquanto dormiam, poder com a ajuda de um sextante observar no céu as estrelas e, corrigindo eventuais erros de navegação, calcular o número de dias que nos faltava cumprir até alcançarmos o nosso destino. Ironicamente, pude prever o número mínimo de homens que precisava para encetar a viagem, as semanas que ela duraria, o trajeto e até a carga que o navio aguentaria.

O que eu não pude prever, foi a terrível tempestade que virou do avesso o casco do navio e fez com que não fosse a totalidade da carga deitada ao mar, o que com maior pena, mais tarde tive de lamentar ao fazer o balanço ao prejuízo. Todos os homens tinham morrido, com a minha honrosa exceção. De trauma em trauma, já passara por muitas aflições. Já escapara ileso da queda de uma ponte, sobrevivera a um tornado e fugira a tempo de explodir um paiol de munições a arder, mas jamais me imaginara a boiar à deriva no oceano, em cima de uma reles tábua que na circunstância de estar em terra e aparecer-me à frente, teria pontapeado julgando que não tinha nenhuma utilidade.

Andei assim seguramente mais de uma hora. Ajudado pelo vento, sentia os ossos enregelados, como a água me tivesse trespassado a pele e molhasse por dentro. O céu permanecia tingido de negro, mas ao longe, numa tonalidade que se aproximava mais do cinzento, dava a ideia de que dentro em breve, sobre a minha cabeça apenas teria o aspeto de quando, na pior das hipóteses, sobra um aguaceiro quando saímos de casa e se estivermos desprotegidos, acabamos por nos constipar. Em contacto permanente com a água desde que o navio se afundara, sentia os membros tão frios, que não sabia por onde começar a friccioná-los, se pelas mãos ou pelos pés, se naquele momento, do céu me caísse uma manta salvadora para me aquecer.

Pouco depois, deparei com destroços que tanto podiam ter pertencido à embarcação em que eu seguia, como a outra, em que, pelos vistos, se eu tivesse optado por viajar, me teria feito chegar até ali do mesmo modo, com a exceção talvez de ter podido escolher para me agarrar, uma tábua maior do que aquela onde estendido o meu corpo mal cabia ou o enorme barril que passou à minha frente e, antes que desaparecesse, montei de imediato temendo que o frágil pedaço de madeira se desfizesse e me arrastasse consigo para o fundo.

Inicialmente sentei-me como se fosse ao leme de uma embarcação segura que me levasse de volta a casa, mas pouco depois senti-me tão cansado que me recostei e deixei ser levado no suave balanço das ondas, na certeza de que para onde quer que elas me conduzissem, eu não enfrentaria uma situação mais delicada do que aquela em que já estava.

Guiado pela corrente, devo ter adormecido porque só me lembro de ter aberto de novo os olhos e dado por mim como se estivesse na foz de um rio, mas ao contrário, indo no sentido de terra desaguar numa praia de areia branca, como a fronha da almofada em que gostaria de acordar naquele momento, acreditando que tinha sonhado com todos os acontecimentos que vivera até então.

Pela presença de tantos coqueiros perto do mar, e sendo aquele um lugar paradisíaco, achei logo que devia ser conhecido e figurar em lugar de destaque num mapa, onde em minha opinião nenhum que assim não fosse devia constar.

Retirei-me da água e arrastei para terra a minha jangada improvisada, até à areia molhada, e agachei-me, de costas para o mar já sem medo do perigo que ele pudesse representar, uma vez que era aos sinais vindos de terra que teria de passar agora a estar atento. No céu, aves de bico comprido e plumagem de cores garridas como eu nunca observara em toda a minha ainda curta existência, observavam-me do alto, como se a elas, que eram tão belas, só pudesse causar estranheza o facto de ver surgir, arrastada pela maré, uma figura humana vestindo roupas esfarrapadas.

Tremi, quando reparei que no céu, as aves, a que se tinham juntado outras de maior dimensão, executavam um bailado como se fossem abutres em torno da carcaça de um cadáver ou ainda ensaiando o assalto final a um moribundo que era eu.

Estupefacto, percebi que se soubesse adaptar-me ao meio, abria-se-me um novo mundo de oportunidades e que até poderia viver em paz com os restantes habitantes, pois estava certo de que para o dono daquele lugar, que tanto podia ser uma ilha como não, só representaria uma ameaça concreta, alguém que aparecesse a reclamá-lo como seu, e esse não seria certamente o meu caso.

Destemido, avancei em direção à sombra, formada por árvores frondosas de cujos ramos pendiam frutas de ar exótico. Estava faminto e desejoso de cravar os dentes numa peça madura, embora de bom grado o trocasse por um naco de carne nem que estivesse mais rijo. Satisfiz-me com um cacho de bananas e enquanto as devorei, olhei em redor sem que nas imediações tenha detetado quaisquer indícios da presença humana, à minha imagem, de algum sobrevivente do terrível infortúnio, que tivesse resolvido adiantar-se e vir mais cedo para caçar o animal.

Após um curtíssimo período de descanso, decidi que era urgente arranjar um sítio seguro, que servisse para passar a noite a coberto do ataque de algum animal noturno, que se investisse contra mim de dia, dir-se-ia estar tão abalado e baralhado das ideias como eu, que entre aves de plumagem de cor diferente e árvores de altura superior ao mastro de uma nau, eu já não sabia para onde havia de me virar.

Ainda assim, dormi essa noite ao relento e na manhã do dia seguinte, ao mesmo tempo que estaria atento a eventuais sinais de gente que vivesse nalguma aldeia próxima de forma civilizada, recomeçaria a minha busca, que iniciei subindo ao monte mais alto que da praia se avistava.

A elevação de terra ficava na direção do poente e era formado por um promontório, que mais não era do que uma escarpa sobre um declive nas rochas provocado pela fúria do mar, que naquele local ia de encontro ao primeiro obstáculo que encontrava em terra. Subi-o com dificuldade, tendo nalgumas zonas de trepar de gatas pelo meio de silvas, como se do outro lado à espera tivesse algo por que valesse a pena ficar arranhado nas pernas e nas mãos, sem desatar dali a fugir para deitado ao sol ajudar a mitigar as dores que sentia.

O que eu vi no cimo do monte que generosamente batizei como da Boa Esperança, deixou-me paralisado de medo. Na pequena porção de terra rodeada de mar por todos que ocupava, constatei que estava numa ilha e gelou-se-me o sangue nas veias, ao presenciar, na baía que dominava a secção do território que era impossível ver da praia, o desembarque de uma tripulação de piratas, a partir de um navio ancorado ao largo que trazia hasteada ao alto a bandeira negra com o temível símbolo da caveira.

Em pequenos baús talvez carregassem, para ir enterrar, algum espólio roubado não muito longe dali. Contudo, de nada me valia desenterrá-lo e apoderar-me de um tesouro, se não tinha forma de, pelos meus próprios meios, escapar e ir gastá-lo onde não fosse reconhecido e me viessem perguntar como fora possível arranjá-lo, tendo estado a viver numa ilha onde ainda teria de aprender a usar os meios de subsistência que a natureza me tinha colocado à disposição.