Seremos mesmo todos Charlie Hebdo?

Os últimos dias têm sido marcados por um bárbaro ataque terrorista à sede do jornal francês Charlie Hebdo. Escudados na religião e tendo como objectivo atacar a liberdade de expressão e espalhar o medo três homens levaram a cabo um atentado que vitimou alguns dos principais cartoonistas do Charlie Hebdo, dois polícias, o porteiro do jornal entre outras vítimas. E perante um dos mais chocantes ataques a um dos pilares da democracia o mundo uniu-se, olhou nos olhos do medo e respondeu de forma clara e inequívoca: “Je Suis Charlie”! Em Portugal houve espaço para tudo: dos textos pungentes de quem ficou profundamente emocionado com o vil atentado às críticas aos cartoonistas do Charlie Hebdo por “se terem posto a jeito”, das capas fantásticas do Diário de Notícias e do Jornal I ao post absolutamente patético do “motivador” Gustavo Santos que colocou todo um país contra si. Mas perante a onda de apoio e críticas importa perceber uma coisa: seremos mesmo todos Charlie?

Bom, o que é realmente importante é percebermos o que está por detrás deste atentado assim como as consequências do mesmo. Ora segundo relatos de quem estava no local os terroristas terão gritado enquanto disparavam: “Vão pagar por terem insultado o Profeta!”. Ou seja, se ainda restassem dúvidas, temos aqui a prova de que por detrás de tão repugnante acto estão motivos religiosos.

Quão fraca é a fé de alguém para se deixar abater, ou afectar, por um simples cartoon, um artigo de opinião ou uma reportagem jornalística? Por mais infeliz que fosse a piada, por mais intragável que fosse a opinião ou por mais errados que estivessem os dados da investigação jornalística a violência nunca deveria de ser a resposta. Muito menos desta forma cobarde, onde a religião aparece como desculpa para perpetrar actos inimagináveis.

je suis charlie

Por muito que tentemos a verdade é que não conseguimos encontrar sinais de um choque entre civilizações, nem sequer entre religiões. Os dois grupos em causa cabem no perfil do vulgar terrorista. Não foi até agora encontrada uma ligação directa dos dois irmãos franco-argelinos ao casal nem de ambos à Al Qaeda ou EIIL. O que por um lado nos pode deixar descansados, mas, por outro, nos deixa ainda mais preocupados.

Descansados porque é sinal de que não se tratava de um ataque conjunto e planeado. Foi uma consequência, infeliz, do ataque ao Charlie Hebdo mas não mais do que isso. E ainda bem. Porque se o fosse poderíamos estar perante o início de uma nova guerra mundial.

Mas também nos deixa preocupados porque se pode tratar do surgimento de uma nova geração de terroristas europeus: jovens, agindo em nome de causas extremas, domésticos (recorde-se que os irmãos nasceram em França), urbanos e ligados ao mundo através das novas tecnologias. A confirmar-se tudo isto temos de lidar com este assunto de uma forma totalmente diferente do que temos feito até aqui.

Conclusão: as ameaças internas são muito mais perigosas para a civilização ocidental do que os inimigos externos. Estão ao nosso lado no dia-a-dia; têm a mesma nacionalidade do que nós; podem usar vestuário idêntico ao nosso; ouvem a mesma música, lêem os mesmos livros e vêem os mesmos programas de televisão que todos nós, pelo menos publicamente. Porque a realidade é que não sabemos quais os verdadeiros hábitos diários que têm nas suas casas.

Devemos temer os extremistas externos? Claro que sim! Mais do que nunca. Não podemos é cometer o erro de pensar que esses são os únicos extremistas que temos que enfrentar. As mais duras batalhas serão contra cidadãos internos, nascidos e criados no nosso país e que, aos olhos de tudo e todos, são cidadãos perfeitamente normais.

Em causa está a defesa da liberdade de expressão. Mas é importante perceber que também está muito mais do que isso em jogo. Não se esqueçam que basta a retaliação a um acontecimento deste género para explodir uma nova guerra mundial.

E em Portugal como é que este tema sensível foi tratado? Com bom e mau jornalismo. Do lado do bom jornalismo encontram-se as capas do dia 8 de Janeiro do Diário de Notícias e do Jornal I (assim como a capa do Inimigo Público de hoje). Ali está expressa a revolta, a indignação e a solidariedade daqueles profissionais, mas também a sua criatividade e genialidade. Do lado do mau jornalismo estão todos aqueles que centraram no debate no “humor negro” e não na “liberdade de expressão” por si só. Só alguém de mente muito pequena e perversa poderia redireccionar o debate para algo tão distante da questão principal.

E depois tivemos o post que mais deu que falar nos últimos dias. Exacto, refiro-me ao decorador de interiores e motivador profissional Gustavo Santos. Ora entre muitas palavras (nas quais se inclui a nova expressão “egóico”, seja lá o que isso for) diz ele: (…) “Que uns sejam apanhados e severamente julgados pelo que fizeram e que outros, os que tiveram sorte e ficaram, assim como tantos outros que fazem carreiras a ridicularizar a verdade de quem não conhecem de lado nenhum, aprendam alguma coisa com isto! Opinar sim, questionar também, agora gozar sistematicamente com convicções alheias é que me parece despropositado.”

Portanto as conclusões a retirar são que para ele acaba-se com isso do humor inteligente e fracturante (já o humor de “casca de banana” pode permanecer, pelo menos por enquanto) e se brincaram seja com o que for (principalmente com ele) estão a “pedi-las”. É triste que a necessidade de publicidade gratuita tenha chegado a este ponto. Mas é ainda mais triste que este post tenha trazido ao de cima muitas mais pessoas que pensam desta forma. Serve isto para ilustrar que nem todos somos Charlies. Por entre alguns “Charlies” estão na realidade muitos hipócritas e extremistas que querem limitar a nossa liberdade de expressão.

A conclusão dos dois casos (o dos irmãos Kouachi e o do casal) foi a esperada: os terroristas foram mortos (alguém achava que eles se fossem entregar voluntariamente ás autoridades?) e os reféns salvos (ainda que, infelizmente, não todos dado que quatro deles acabaram por perder a sua vida). Mas o precedente foi aberto. Agora todos sabem como fazer um atentado. Isso pode ser uma ajuda para as forças de segurança, mas também é uma dica preciosa para os extremistas.

Por agora estamos salvos.
Resta saber por quanto tempo.

Boa semana.
Boas leituras.