Sob uma chuva de pólen e flores

A sensação de minúsculos flocos de neve na cabeça, derramados das copas das árvores que no inverno me habituei a ver despidas de folhas, só tornei a senti-la passados quarenta anos, num dia em que, ter ido de casa para o trabalho a pé, serviu para ver que, em dois mil e dezassete, atingi já em maio, a forma física em que desejo que o meu corpo se exiba este ano nos meses de praia no verão.

Às catorze horas, o termómetro de parede do escritório onde eu trabalhava, apontava os dezanove graus, mas lá fora, senti que o calor era intenso e nem à sombra se notava a diferença de já não estar parada ao sol, numa blusa tipo top que me destapava o corpo como se deixasse à mostra todos os poros de pele que ele escondia por baixo.

Nos últimos dois dias, tinha o carro imobilizado na oficina, à espera de uma peça que vinha de fora, para substituir na caixa de velocidades, e que devia estar gasta de tanto pisar no acelerador como se fosse dele a culpa de querer chegar depressa e bem a todo o lado ao mesmo tempo. Mas era próprio do meu temperamento agir como um socorrista que juntava ao propósito de salvar vidas, a tarefa de aconselhar sobre como evitar pôr de novo a vida em perigo.

Por ser um modelo mais recente da mesma marca, ao do meu namorado eu não precisaria de colocar num pedestal para, qualquer pessoa que me visse a olhar para ele, saber que era um carro que eu simplesmente adorava. Tinha os estofos forrados num tecido que imitava a pele natural, um autorrádio com capacidade para diversos cd’s e um volante ultra desportivo, e apesar de ser pequeno estava pintado num tom de amarelo-torrado que o fazia parecer andar a uma velocidade supersónica em rota de colisão com o sol.

Para combinar com a roupa, apeteceu-me nesse dia calçar um par de sabrinas, que me esfolaram os calcanhares no decurso dessa caminhada em que tão-pouco me doeram os músculos apesar do esforço suplementar das pernas, pois a dada altura tornava-se particularmente difícil continuar a caminhar, de pés tortos como se fosse para me desviar de tantos buracos abertos no passeio.

E não fossem as feridas nos pés que depois custaram a sarar, dir-se-ia que o dia até tinha acabado por correr bem, pois a pretexto de, numa próxima vez, usar calçado mais confortável, para o lugar dessas sabrinas eu já tinha ido comprar umas sandálias de salto alto, que para ir ajeitando ao formato do meu pé, haveria de começar a usar mal conseguisse enfiar nelas os dedos sem magoar ainda mais os joanetes que estavam prestes a sangrar.

No momento em que a memória recuou quatro décadas ao tempo em que era uma simples criança, revi nas mãos do meu velho pai, flor dos pinheiros bravos da quinta, que ele apanhou do chão como se fosse o resultado de uma colheita feita no passado, mas que agora começava a dar frutos. Falava-me do que plantava na horta e, numa época em que o termo agricultura biológica apenas designava uma tendência que se verificava no estrangeiro, contava a importância de excluir da nossa alimentação os produtos carregados de pesticidas e outras toxinas, a que eu mais tarde juntei a carne.

Depois, não sobrou muito tempo para perceber o que se passava, porque subitamente uma rajada de vento oriunda do lado em que ficava a nossa casa, arrancou-lhe da mão todas as flores que eu vi esvoaçarem em círculo em direção ao céu como se quisessem novamente fixar-se nos ramos das árvores das quais, nos últimos dias, tinham caído aos milhares.

A uma menina de dez anos de idade, como eu era naquela altura, escapavam as razões na origem do fenómeno meteorológico que me fora dado presenciar, mas na retina ficou retida a imagem de uma chuva de pólen e flores, visto que o impacto visual do que acabara de ver era largamente superior à necessidade que tinha de conhecê-las. Para mim, que nunca tinha observado a precipitação da água em estado sólido, parecia-me que nevava sob a forma de pequeníssimas flores, de cuja proveniência celestial eu não duvidava por serem as mais bonitas que tinha visto ao longo da minha vida. Virei-me para o meu pai e vi-o secar uma lágrima, que, se eu perguntasse, diria que era que entrara na vista por estar de olho arregalado na minha reação que não podia senão de espanto.

Parecendo despertar de um sono de décadas, o vento soprou ainda com mais força, estremeceu mesmo as árvores de maior dimensão capazes de albergar um regimento de soldados e dei por mim a voar, cada vez mais alto à medida que sobrevoava os telhados das casas da aldeia e via fugirem de mim, com receio de que as agarrasse e arrastasse para longe, as pessoas que vinham à janela para ver o que se passava.

Não sei durante quanto tempo durou a minha subida ao céu, que terminou quando acordei e levantei a cabeça da almofada, mas passei a dormir visando, nos meus sonhos, descobrir uma fórmula capaz de trazer mais fantasia ao dia-a-dia das pessoas.

Presentemente, quando lho recordo, o meu pai lembra-se deste episódio ter-se dado, não comigo, mas com a minha irmã Elsa, que sempre foi mais ingénua do que eu e, ainda hoje na idade adulta, acredita nas histórias que ouve, sobretudo nas contadas pelo meu pai. Mas foi preciso uma viragem do vento que criou um redemoinho e trouxe um manto de nuvens parecido com o teto de uma casa prestes a desabar, para eu recordar esta história que ela já teria esquecido, mas eu não e por isso a vou contando à minha neta Laura para assim a ir perpetuando no tempo.