28º à sombra

No domingo fui a uma praia com bandeira azul, mas o que eu vi quando lá cheguei foi que ela estava vermelha.

Com vinte e oito graus à sombra, Lisboa transformara-se, de um dia para o outro, na capital mundial das cidades com menos pessoas dispostas a emigrar, porque o inverno fora rigoroso e agora andava toda a gente desejosa de desfrutar dos primeiros raios de sol, daí que aproveitá-lo fosse a concretização de um sonho antigo de há pelo menos três meses.

Como estava em casa de folga e sem nada para fazer, tomei a resolução de ir à praia, pelo que à pressa, antes que alguma nuvem viesse e se interpusesse entre aquilo que eu mais desejava fazer e o majestoso astro-rei, enfiei numa sacola um par de calções de banho e uma toalha de turco e, de carro pus-me, a toda a velocidade a que podia circular legalmente dentro de uma localidade, a caminho da praia mais próxima de casa, que era na zona de Caxias, nos arredores de Lisboa, onde por mais calor que fizesse me sentiria mais confortável do que em casa onde, se quisesse para andar fresquinho, podia tirar toda a roupa e andar nu à vontade.

Poucas rotundas abaixo do sítio onde eu morava, à passagem do movimentadíssimo largo de Alcântara, local de onde saíra da faixa destinada aos transportes públicos para entrar na via rápida que ia dar ao tabuleiro superior da ponte, já que o inferior era destinado à circulação dos comboios, tive forçosamente de estancar na cauda da extensa fila de carros que se estendia à minha frente como um sinal de sentido proibido que eu não tinha maneira de contornar, o que me deu uma vontade ainda maior de chegar, com receio de tanta gente poder chegar antes de mim e, ao estender a toalha na areia, não haver espaço para eu pôr a minha.

Havia mais de uma semana que andava a prometer, mas o tempo húmido dera finalmente lugar ao ar seco proveniente do norte de África e o calor viera para ficar, certamente soprado por um vento que arrastaria do sentido de sul para norte uma revoada de areia que cobriria o céu e que havia de ser o início de um período de seca prolongada cujo pico de temperatura mais baixa aconteceria precisamente nesse dia.

Para me entreter enquanto o carro não andava, pus-me a observar quem passava despreocupado dos meus problemas. De tantas pernas jeitosas de senhora que vi nesse dia, já não tinha razões para duvidar da possibilidade de me poder vir a apaixonar por dois ou mais pares ao mesmo tempo. Umas eram mais altas do que outras. No seu lugar, nas pernas de uma daquelas senhoras que eu via passar de saia travada e saltos altos, limitar-me-ia a pedir que houvesse ao meu gosto sapatos de tamanhos quarenta e quatro, que era o meu número. Na pele de uma das outras, mais baixas e não com o pé tão grande, ficaria satisfeito ao saber que tudo o que as minhas rivais em altura calçassem me servia, embora um pouco à larga, ao passo que nenhum dos meus sapatos elas podiam usar, sob o risco de ficarem com os dedos apertados e, desconfortáveis como eu ficaria se usasse os sapatinhos do meu filho de cinco anos, andarem todas tortas.

Cheguei à praia a uma hora em que estando o sol a pino, não era para ninguém pensar que, para fugir do calor, estava disposto na disposição de voltar cedo para casa.

Estava repleta de gente, mas naquela praia o que havia era sol às primeiras horas do dia, antes de começarem a chegar as pessoas que haveriam de enchê-la, dos mais velhos, que para não perderem o hábito de se levantarem cedo iam para a praia em vez de ir trabalhar, aos mais novos, que das discotecas de onde saíam a altas horas iam diretamente para lá, como se mais do quem casa, onde os pais os punham de castigo, era nesse local que esses notívagos não queriam que ninguém desse pela sua falta para não perderem a fama de boémios de que desfrutavam, sobretudo junto das raparigas que os idolatravam como aos nadadores-salvadores que quando era preciso acorriam para as salvar.

Mas se quiséssemos estabelecer uma ordem, diríamos que antes das pessoas e do sol viera o mar, arrastando consigo todas as formas de vida que nele existiam, vindo juntar-se às rochas e ao areal, elementos sem os quais a este espaço, em vez de praia, chamaríamos campo, o qual não passa de uma extensão de terra coberta de pedras e vegetação que em muitos casos cresce desordenadamente sem a intervenção direta do homem. Se ela tivesse relevância não erraríamos ao afirmar que a areia tinha chegado antes do mar, uma vez que ao nascer do dia e a seguir à maré que vazara na véspera, já ela lá estava aguardando o mar que viria calmamente ao seu encontro.

Ultimamente, não era apenas durante o Verão, conhecida por ser tipicamente a estação mais quente do ano, que a maior parte das pessoas ia agora à praia. Embora o fizesse noutras épocas, no inverno é que ela era quase deserta, unicamente frequentada pelas famílias dos pescadores que do mar esperavam que eles retirassem o seu sustento.

Aos grupos de turistas que a frequentavam, não importavam tanto os problemas dos habitantes locais que os impedissem de ir a banhos. Uns, nadavam ou corriam areal afora sem nenhuma motivação em especial, apenas por desporto ou lazer, mas outros, sobretudo homens, também alheados da vida difícil das famílias dos pescadores, andavam em busca de alguma mulher bonita de férias, que com eles logo nessa noite quisesse começar a tentar constituir uma.

Quase todos os homens eram gordos, de barriga proeminente como um saco onde armazenavam os alimentos de que não precisavam para viver, os restantes eram quase gordos. Em oposição, as mulheres de ambos eram tão magras como as namoradas de alguns dos rapazes que eu via, de quem eram quase mulheres porque se deitavam com eles três ou quatro vezes por semana, dependendo do número de noites em que os pais as autorizavam a sair com as amigas.

As crianças que brincavam perto deles, na areia molhada, erguiam castelos ao melhor estilo medieval, que ameaçavam ruir a qualquer momento, com torres de vigia que imaginavam ser tão altas que, do cimo delas, podiam facilmente avistar ao longe, mas que na realidade eram tão pequenas que, de longe, ninguém conseguia avistar, nem sequer de muito mais perto do que o sítio onde estavam as suas mães extremosas que, de quando em vez, lhes vinham passar no corpo protetor solar ou ajeitar o chapéu, qual capacete de um soldado, que não ameaçava cair mas eles teimavam em tirar, ou vestir uma camisola, como se com ela, os quisessem proteger do sol tanto como se lhes estivessem vestindo uma armadura para mandar para a guerra.

Os que chegavam mais tardiamente, para gozarem o merecido descanso das férias, é que vinham com a pele branca, contrastando com o tom castanho dos que se preparavam para partir, cedendo-lhes o lugar.

Podia continuar a debruçar-me sobre as pessoas que frequentariam a praia na época balnear que estava longe de começar, naquela praia ou noutra, ou descrever os elementos naturais, como as rochas e a areia presentes, semelhantes aos de qualquer outra que pudéssemos imaginar. Fazê-lo até começar e terminar o verão, mas não os dias de calor que costumavam prolongar-se até chegar o outono ou, simplesmente, até acabar de narrar o que se passou nesse dia, em que afinal o mar estava picado e eu não pude tomar banho e que terminou com a ida para casa do banhista mais retardatário, que uma coisa era certa: na manhã seguinte outros viriam e ela tornaria a estar repleta de gente.

Nota final:

Adiciono aqui um vídeo de uma canção romântica cantada em francês que se chama precisamente “28º graus à sombra” e que foi uma sucesso enormíssimo nos anos 80. Muita gente recordará ter namorado ao som dela.