40 dias a bordo da Eurovisão em Portugal

Ainda mergulhado no espírito eurovisivo, decido contar-vos este mês a minha experiência enquanto voluntário do Festival Eurovisão da Canção 2018. Um relato confessional acerca de uma aventura ímpar e inédita em solo nacional.

 

Esperámos qualquer coisa como cinquenta e três anos para vencer a Eurovisão e, consequentemente, ter a oportunidade de a organizar. Inicialmente não sabia muito bem como, apenas que, enquanto melómano e apaixonado pela cultura eurovisiva, queria ser parte integrante do Festival: comprar bilhetes para assistir a um dos muitos espectáculos na Altice Arena seria a opção plausível, mas assim que tive conhecimento do programa de voluntariado lançado pela RTP, soube que seria por ali o caminho.

E como o que tem de ser tem muita força – preces erguidas aos céus e rezas eurovisivas constaram do cardápio – acabei por ser um dos eleitos! O programa estipulava a entrada de cerca de 400 voluntários espalhados em mais de duas dezenas de áreas, sendo que desses, menos de metade iniciava funções um mês e meio antes dos espectáculos. A área para a qual fui escalado, a das acreditações (isto é, estar encarregue de receber e acreditar com passes de acesso todo o pessoal destinado a circular no recinto), foi uma das primeiras a entrar no activo e, como tal, a minha jornada eurovisiva começou a 5 de Abril.

Entrei um pouco em desvantagem em relação aos meus colegas da área, no sentido em que cheguei três dias atrasado à festa – isto porque vim nas camadas de reforço – o suficiente para falhar algumas coisas essenciais, entre elas a dita entrevista aprofundada com a equipa que se tornaria no nosso back office vital, e o sentimento de união e assombro inicial típico de quem entra numa aventura desta envergadura. Acabei por tê-las, é certo, mas de uma forma mais improvisada e retardada.

“A área para a qual fui escalado, a das acreditações (…) foi uma das primeiras a entrar no activo e, como tal, a minha jornada eurovisiva começou a 5 de Abril.”

O maior sorriso do mundo não chega para descrever aquele com que entrei no Pavilhão de Portugal – o meu local de trabalho durante os quarenta dias – para a entrevista “apressada”, visto que foi o momento de compreensão do que estava prestes a acontecer. Diante de mim tinha apenas um amplo espaço branco preenchido por alguns futuros colegas já nos seus postos, três painéis eurovisivos e umas quantas fitas vermelhas divisórias intimidantes – o bastante para ter noção da honra que era poder fazer parte da equipa que ajudaria a erguer a Eurovisão em Portugal.

Nos primeiros dias de trabalho rivalizávamos em termos de inactividade com o deserto do Saara. Reza a lenda que o primeiro dia foi deveras turbulento, na medida em que o núcleo de trabalhadores do recinto precisava de receber a sua acreditação para iniciar funções, mas depois dessa enxurrada inicial demorou umas boas semanas até se registarem semelhantes picos. O que não é aconselhável quando uma pessoa se tenta inteirar das mecânicas e práticas do cargo, mas excelente quando se precisa de conhecer os cantos à casa e, sobretudo, as pessoas que integram a equipa.

E, como vim a descobrir, uma experiência de voluntariado é parte trabalho, parte troca de vivências/contactos, e foi isso que a jornada eurovisiva começou por ser para mim: uma valiosa jornada de enriquecimento pessoal e relacional. Contrariamente ao bando de miúdos que esperava encontrar, dei de caras com uma equipa de vinte e tais pessoas bastante heterogénea onde o elemento mais novo contava com dezanove anos e o mais velho se aproximava da faixa dos cinquentas.

“E, como vim a descobrir, uma experiência de voluntariado é parte trabalho, parte troca de vivências/contactos (…)”

Estávamos divididos por três turnos – manhã, tarde e noite – que cumpriam entre si cinco horas diárias numa carga horária semanal de vinte e cinco, sendo que estava inserido no turno intermédio, o que me permitia conhecer também os colegas dos outros períodos. Do estudante universitário atarefado, ao miúdo recém-licenciado que procurava o seu lugar no mundo, passando pela rapariga das mil-e-uma-ocupações até à “jovem veterana” que havia perdido o seu emprego, mas contagiava tudo e todos com o seu positivismo: a diversidade e inclusão patentes no espírito do festival também se alastravam ao voluntariado.

Conhecermo-nos, partilharmos vivências e também pontos de vista sobre as canções a concurso – não esquecendo que de um certame de música se tratava – foi então a parte mais entusiasmante e recompensadora das primeiras semanas. Isso e o sentirmos de cada vez que dávamos o check-in no recinto, onde para nosso bem nos aguardava todo um apertado controlo policial, o quão privilegiados éramos por fazer parte de uma mega-operação secreta onde em breve iriam estar depositados todos os olhos da Europa.

E deixem-me dizer-vos como é bonito trabalhar no Parque das Nações. Poucas coisas davam mais alento do que percorrer o percurso à beira-Tejo banhado por aquela luz fabulosa que Lisboa transporta como ninguém, rumo a um posto de sonho. Vimos crescer o recinto, do amplo e semi-vazio complexo à espera de ser preenchido, para uma azáfama de tendas gigantes, maquinaria e pessoas de todas as nações. A monotonia nunca se instalava porque os percursos e acessos mudavam a um ritmo constante.

“O espírito de familiaridade que naturalmente se desenvolveu entre nós, colegas, passou também para a equipa de supervisores aka back office. E isso era algo com que não contava.”

O espírito de familiaridade que naturalmente se desenvolveu entre nós, colegas, passou também para a equipa de supervisores aka back office. E isso era algo com que não contava. Bem mais atarefados que nós e não raras vezes com reais problemas entre mãos, eram eles que esclareciam dúvidas mais traiçoeiras ou aprovavam processos algo complexos, aproveitando as escassas pausas ou momentos mais calmos para interagir connosco e de alguma forma comungar naquele espírito eurovisivo. Tratando-nos sempre de igual para igual. Sempre atenciosos, sempre incansáveis.

A nossa função em si era puramente de recepção. Entregar cartas de compromisso e vouchers, recolher assinaturas, verificar números de identificação, tirar fotografias sempre que era necessário (e ainda foram bastantes), imprimir e entregar os cartões de acreditação, bem como as senhas de acesso para a app eurovisiva de nome caricato, a Tolana, e depois – a parte mais aborrecida – arquivar em dossiers por ordem alfabética todos os processos que davam entrada no recinto. Mais para o final, outra tarefa ingrata se sobrepôs: carregar os sacos de oferta que toda a imprensa acreditada tinha direito a receber. Eram às resmas e um tanto difíceis de transportar. Bem, os músculos agradecem.

Éramos, portanto, o primeiro contacto que as pessoas tinham ao entrar no recinto, sendo por isso de extrema importância que saíssem dali satisfeitos e entusiasmados com a perspectiva da sua estadia eurovisiva. E nesse sentido acho que fizemos todos um trabalho bestial, na medida em que não recebemos nenhum feedback negativo da gerência.

“(…) a verdadeira diversão teve início quando a imprensa, staff, fãs e delegações de outros países começaram a chegar. “

E se nos primeiros tempos o escasso movimento que existia se reduzia à acreditação de colaboradores locais, a verdadeira diversão teve início quando a imprensa, staff, fãs e delegações de outros países começaram a chegar. O sistema automaticamente informava-nos a função para que vinham e o país de onde eram oriundos, por isso era comum atender um eslovaco, seguido de um búlgaro, irlandês ou cipriota atrás. Quando se proporcionava, conseguíamos até trocar dois dedos de conversa, o que era o suficiente para um enriquecimento cultural e pessoal – em que outros trabalhos aqui em Portugal isto acontece sem que se saia do lugar?

A jornada eurovisiva corria a bom gás quando nos foi concedido um verdadeiro bónus: assistir a um dos ensaios do espectáculo da final. Imaginem lá o que foi ver antes de todo o mundo a actuação de abertura de Ana Moura e Mariza e o desfile das bandeiras que tinha os Beatbombers como anfitriões? Entrar na Altice Arena – espaço a que não tínhamos acesso, saliente-se – na sua produção mais megalómana, cercada de um ambicioso aparato de luzes, gruas, cabos e de um palco imponentíssimo é uma sensação que só consigo descrever como o entusiasmo provocado por um dia de Natal, Ano-Novo e de aniversário vividos num só.

A semana eurovisiva que compreendia as duas semi-finais (8 e 10 de Maio) e o espectáculo da final (12 de Maio) acontecia por fim e acho que já todos nós vivíamos um pouco acima das nossas melhores expectativas e dos sonhos de um comum mortal. Era também a semana em que podíamos celebrar todo o esforço depositado na organização do evento, com a abertura da Eurovillage no Terreiro do Paço e do Euroclub (o local onde mais me diverti), e em que efectivamente foram construídas as memórias idílicas de toda esta aventura.

“A jornada eurovisiva corria a bom gás quando nos foi concedido um verdadeiro bónus: assistir a um dos ensaios do espectáculo da final.”

Não sei se por generosidade ou por ser prática habitual em anos anteriores, foi concedida a todos os voluntários a oportunidade de assistirem a um ou mais espectáculos do Festival, que além das cerimónias transmitidas em directo na televisão tinha ainda os chamados jury e family shows que serviam de teste às transmissões televisivas, processando-se de igual forma a estas. Como fã eurovisivo, e porque o horário dos turnos assim o permitia, optei pelos três mais importantes, acabando por fazer o pleno das semi-finais e da final, rodeado sempre dos elementos que fizeram parte da minha caminhada, o que tornou a experiência ainda mais única. Com a breca, foi mesmo a semana mais incrível da minha vida!

“Era também a semana em que podíamos celebrar todo o esforço depositado na organização do evento, com a abertura da Eurovillage no Terreiro do Paço e do Euroclub (…)”

A odisseia chegou ao fim quarenta dias depois de ter começado e, apesar da evidente tristeza e nostalgia pelo seu término, prevalecia o sentimento de gratidão, honra e missão cumprida. Entre abraços, brindes e agradecimentos finais, foi-nos dito que “não só fizemos parte da história da Eurovisão em Portugal, como da história da RTP” – haverá lá melhor recompensa? Ficam então as amizades, as experiências únicas, os almoços catitas no Bufalo Grill, o sentido de missão, o sentimento de união e euforia colectiva e, sobretudo, memórias que alimentarão uma vida.

Nunca antes havia feito qualquer experiência de voluntariado e não poderia ter pedido uma melhor estreia. Estejam em que ponto estiverem da vossa vida, achem-se ou não capazes de estar à altura da tarefa, o importante é que se permitam a viver uma aventura dentro ou fora da vossa zona de conforto, mas que essencialmente vos faça sentir parte integrante de algo maior. Serão melhores seres humanos e tão mais completos depois de por lá terem passado!

 

Foi um enorme prazer estar a bordo!