666

Era uma noite fria, triste e de intenso nevoeiro. A noite contrastava com o dia, de autentico Verão de São Martinho. Eu deambulava sozinha pelas ruas, com alguma ansiedade percorria as ruas a pé para chegar a casa da Clara, a minha amiga desde o primeiro ciclo. Ligou-me desesperada, que se passava algo em casa dela, chorava sem cessar, muito assustada, pediu-me que fosse ter com ela o mais rápido possível, logo depois a chamada foi interrompida. Eu já estava vestida a preceito para sair com o nosso grupo de amigos, tínhamos reservado seis lugares para o Clube Top da cidade. Calcei as botas que estavam na entrada, vesti o casaco comprido e quente que estava pendurado e saí porta fora. Deve ser mais um arrufo de namorados, a Clara é mesmo assim, namora há três anos com um palhaço que se intitula namorado dela, mas a intensidade dos sentimentos dela não é reciproca, pensei eu. Pelo caminho, fui presenciando, com alguma graça, os miúdos a correr pelas ruas, vestidos de esqueletos, diabos, monstros, doce ou travessura, perguntavam eles quando lhes abriam a porta…era Noite de Halloween.

Tinha ainda uma avenida para percorrer até chegar ao meu destino, sabia que havia um atalho que encurtava o caminho, resolvi ir pelo atalho. Uau, já não me lembrava desta rua, tão sombria e desnuda, não anda ninguém aqui, porra, ainda vou ser desmembrada por algum maluco, que irá fazer dos meus intestinos o seu jantar, ri-me sozinha. Ouvi um barulho, olhei para trás, não vi ninguém, continuei a caminhar, estas botas de cano alto com as meias de liga e saia curta de diaba não tinha sido uma boa opção para andar tanto a pé. Porque é que não apanhei a merda de um táxi? Sempre que ia a casa da Clara demorava cinco minutos, hoje parecia uma eternidade.

Outro barulho, olhei novamente para trás, nada, só uma neblina escura. Apressei o passo, os meus passos faziam eco no final da rua, mas o final da rua tardava a pisar. Na parede, um grafiti despertou-me atenção, era o numero seis invertido, seguido de um símbolo que não consegui identificar. Uau, perfeito para esta rua, onde não passava viva alma, satirizei. Estou quase a chegar à rua principal, pensei eu. Senti um arrepio, está a ficar frio, parei por um instante na rua, subi um pouco mais as meias e ajeitei o casaco. Senti alguém a aproximar-se, ia olhar para trás, mas já não tive tempo, alguém me empurrou contra a parede, e tapou-me a boca com a mão, eu entrei em pânico, não conseguia ver ninguém, mas sentia um respirar estranho bem perto de mim, as mãos ásperas e excessivamente quentes, eu não conseguia respirar, tentei mexer os braços, mas fiquei imobilizada pelo medo. Estava muito escuro, a única luz que avistava era uns metros à frente, senti uma mão a deslizar pelo meu corpo desde a coxa desnuda até ao pescoço, ouvi uma voz a sussurrar no meu ouvido: seis…seis…seis…as lagrimas começaram a escorrer pelo rosto, não sabia o que pensar, ganhei forças e empurrei-o, ele caiu para o chão, eu comecei a correr, deixei a mala, corri com todas as forças que tinha sem olhar para trás, chorava desesperada, depois de uns bons metros a correr, cheguei finalmente à esquina, desviei-me para a rua principal, andei mais uns metros, aqui já era um local de passagem, a rua estava mais movimentada, mas sentia-o a vir atrás de mim, não conseguia acreditar no que estava a acontecer. Cheguei finalmente a casa da Clara, numero da porta seis, tinha as chaves da casa dela, para qualquer urgência, tentei abrir, mas as minhas mãos tremiam, as chaves caíram ao chão, quando me abaixei vi que ele estava a vir na minha direção, oh meu Deus, apanhei as chaves e abri a porta, entrei, fechei a porta e respirei fundo. Gritei Clara, Clara, desesperada, ela não respondeu, gritei novamente Clara, Clara, nada. Subi as escadas e estava tudo escuro. Ela saiu e não me avisou? Acendi as luzes e vi sangue espalhado pela sala, oh…isto não pode estar a acontecer, não…não, segui o sangue pela casa e vi-a, a minha amiga estava morta, um cenário de horror, ela…oh meu Deus…comecei a gritar, Clara, não Clara, por favor não…o corpo da minha amiga jazia na cama, as mãos tinham sido cortadas, os olhos tinham sido retirados…senti-me mal, fui diretamente para a casa-de- banho, vomitei e chorei sem parar.

Tenho de ligar para o 112, tenho de ligar para a policia, peguei no telemóvel…sem rede, dirigi-me à sala, peguei no telefone, marquei o 112…a linha foi cortada, a luz foi abaixo…ouvi o barulho da porta a abrir…não, porque é que isto está a acontecer? Porquê eu? Porquê a Clara?

Tentei chegar à cozinha, tirei a primeira faca que encontrei na gaveta, fugi para as traseiras, escondi-me dentro do armário do quarto de hospedes. Tentava relacionar o que me tinha acontecido na rua com o assassinato da Clara, oh meu Deus…o que ele me sussurrou ao ouvido, o 666, o numero do Diabo, primeiro íamos seis amigos sair, depois o seis invertido num grafiti, e o numero da porta da Clara – seis, eu nunca acreditei nestas historias, sempre gozei com estes temas, será que é tudo verdade? Será que o Diabo veio atrás de mim? Ouvi os passos dele a entrar no quarto, a respiração dele era horrível, não era de uma pessoa normal, não podia ser, contive a minha respiração, espreitei pela fechadura, vi o vulto dele, era alto mas curvado, as pernas muito finas, quase transparentes, as mãos grandes, cor de fogo…não consegui ver o seu rosto, as lagrimas alteravam-me a visão, veio na direção do roupeiro, não, não, não, abriu a porta, espetei-lhe a faca e desatei a correr pela casa, ele levantou-se logo a seguir e correu atras de mim, eu senti-o quase a alcançar-me, tentei abrir a janela mas estava trancada, corri pela sala, escorreguei e cai no chão, olhei para trás e lá estava ele, uma criatura vindo do inferno, fiquei paralisada, ele arrancou a faca do peito e sorriu, a faca não tinha causado qualquer mossa no seu corpo desformado, ele aproximou-se de mim e…foi então que eu vi…o horror…os seus olhos estavam cosidos com os olhos da minha amiga Clara. Desmaiei…

“Ela está a acordar. Ela está a acordar.” Ouvia as vozes enquanto abria os olhos. “Você sabe quem é e o que aconteceu?”. Uma voz colocava-me questões, enquanto me dava uma picada no braço. Não, respondi com fraqueza. Doía-me a cabeça. Sentia-me confusa. Quando acordei, percebi…estava numa ala psiquiátrica, altamente medicada e com fortes medidas de segurança, foi-me diagnosticado uma doença mental com probabilidade forte de suicídio. Ia ser acusada de homicídio em primeiro grau, pela morte da minha amiga Clara. Após uma chamada anonima, a policia dirigiu-se a casa da Clara e encontrou um cenário de horror, eu ainda respirava, não tinha sequelas para além de uns arranhões, a arma do crime não foi encontrada, não havia sinais do monstro que eu tanto falei enquanto delirava.

O ministério publico condenou-me a 25 anos de cadeia, pena máxima por crimes desta magnitude, jurei sempre inocência, tantas vezes que me chamaram assassina, que eu me convenci que tinha assassinado a minha amiga Clara. Já na cadeia, seis meses depois da noite de horror, da qual tenho pesadelos diariamente, senti-me mal, as guardas prisionais levaram-me ao medico. Você está gravida! Gravida? De quantos meses? Seis…