A Confissão da Leoa

Em seus Testamentos Traídos, Milan Kundera afirma que a moral do romance é suspender o julgamento moral. Na literatura de Mia Couto, isso é feito com maestria poética, cada verso em prosa turvando nosso pensamento ao oferecer um novo modo de enxergar a vida, partindo de visões também ofuscadas, pelo misticismo, a tradição e as lendas de uma África libertada de seus colonizadores mas presa por suas próprias contradições . Mia concede espaço a vozes que “desadormeceram” nele e nos obriga a questionar a fronteira entre o sensível e o imaginário, a relação do homem com a natureza e os deuses e, finalmente, a fé e a ausência de.

Em seu romance A Confissão da Leoa, o autor mostra que é capaz de aliar seu dom natural como contador de histórias à sua sensibilidade poética e principalmente ao seu talento como romancista, para criar um livro cativante e belíssimo. Ao narrar a história de uma aldeia em Moçambique que sofre com ataques de leões, Mia desenlaça a problemática da violência advinda do conservadorismo e concede espaço para que os oprimidos contem suas histórias, oferecendo não apenas um forte e emotivo texto lírico, mas também uma experiência única ao leitor. Concomitantemente, divide a outra metade da narrativa ao relato do caçador chamado para matar os leões, um melancólico e misterioso homem que, ao chegar na aldeia, escuta que “os verdadeiros leões estão dentro da aldeia” da mãe de uma das vítimas e tem que planejar sua caça com isso em mente.

A sequência de eventos escolhida pelo autor faz com que testemunhemos o confronto entre a mentalidade do povo da aldeia e os poucos que nos parecem mais “sensatos. Porém a efusão de um misto entre realismo mágico e poesia derruba qualquer opinião pré-concebida e joga os enigmas e mistérios ao léu, prendendo a atenção do leitor até a última página e, de modo espetacular, servindo como prova viva da afirmação de Kundera.

Belo e inesquecível, A Confissão da Leoa é um fantástico pedaço de literatura.