A História dos Direitos Humanos

Era uma vez um mundo de humanos que viviam em paz e harmonia. As crianças tinham direito à educação, toda a gente votava, não havia guerra nem conflitos e a fome era um sentimento que só existia antes da próxima refeição. Era uma vez uma mentira. Um mundo assim não existe. Nunca existiu. Para o bem e para o mal, nunca vai existir. Como tal, e para que os direitos das pessoas sejam respeitados e os seus deveres cumpridos, existem leis dos mais variados tipos. A minha lei favorita é aquela que obriga todos os Estados a cumprirem a Declaração Universal dos Direitos Humanos, onde trinta artigos tentam delimitar os direitos básicos do ser humano.

De acordo com a definição apresentada pela Organização das Nações Unidas, direitos humanos são “garantias jurídicas universais que protegem indivíduos e grupos contra acções ou omissões dos governos que atentem contra a dignidade humana” e “distinguem-se (…) por serem direitos individuais, universais e iguais para todos os seres humanos, inalienáveis, indivisíveis e interdependentes. A razão para exigir o cumprimento dos direitos humanos é a dignidade inerente a todos os seres humanos” (Mendes & Coutinho, 2014, pp. 163-165). O requisito máximo para poder reivindicá-los é, portanto, o seu desrespeito e a condição de se ser humano.

A 10 de Dezembro de 1948, foi escrita a Declaração Universal dos Direitos Humanos, com base na Carta das Nações Unidas de 26 de Julho de 1945 e nos valores das declarações de direitos das revoluções liberais. Os direitos humanos existem há muito tempo, sendo antes referidos como direitos naturais. A primeira pessoa a mencioná-los de “forma acabada” foi John Locke[1], em 1690.

Os direitos humanos podem ser categorizados segundo a sua relevância e importância. Estas categorias foram aparecendo consoante as necessidades da sociedade. A primeira geração de direitos humanos (civis e políticos, como a liberdade e o sufrágio) surgiu no século XVIII pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Pouco tempo depois do fim da Primeira Guerra Mundial, surgem os primeiros direitos colectivos de ordem social, económica e cultural: a chamada segunda geração. Esta geração apela à participação da sociedade, incentivando as massas a lutar pelos seus direitos. Já a terceira geração tem um cariz fraternal. Surgem nos anos 1960, numa época de confrontos sociais e afirmações de poder, com o intuito de promover a protecção de grupos sociais vulneráveis e para apelar à preservação do meio ambiente. Por último, a quarta geração. Apesar de ser um tema recente e de muitos ignorarem a sua existência, a quarta geração de direitos humanos está intimamente relacionada à tecnologia (direitos da bioética e da informática).

Acontece que, para que os direitos tecnológicos se desenvolvam em pleno, é necessário que as gerações anteriores estejam bem afirmadas. Os direitos humanos são como um castelo de cartas: ao falhar um dos alicerces, todos os outros ficam em risco. O objectivo é preservar a dignidade humana, começando pela “aquisição” de direitos mais simples, como os civis e políticos, e terminando nos mais complexos, como os da quarta geração.

Mahmoud Cherif Bassiouni, especialista em Direito Penal Internacional e expert em crimes de guerra, aponta a Segunda Guerra Mundial[2] como o ponto de viragem para a lei internacional. Depois das atrocidades cometidas durante o Holocausto[3], foi necessário preservar as liberdades dos indivíduos e assegurar que o mundo, e principalmente a Europa, não voltavam a perseguir minorias étnicas, violando massivamente todo e qualquer direito humano alguma vez existente.

No fundo, não se sabe quando surgiram ou quais as suas origens (históricas, filosóficas, morais, ideológicas,…). Sabe-se apenas que os direitos humanos, mais ou menos complexos, com mais ou menos expressão, estão na nossa sociedade desde sempre. Os historiadores afirmam que surgiram há 500 anos; no caso dos teológicos, dizem que remontam ao início das religiões; para os filósofos, é certo que foi na altura do Iluminismo[4]. Bassiouni afirma que a sua maior expressão começou no pós-modernismo[5].

Relativamente aos três regimes jurídicos internacionais complementares que abrangem os direitos humanos e têm em comum a protecção dos direitos do Homem em prol de violações cometidas pelos Estados. Reconhecem que: “(1) the individual as a subject of internationally established rights and obligations arising directly under international law, (2) these rights and obligations override national law, (3) that they are binding upon states, and (4) that they require (…) international and domestic enforcement measures, sanctions, and ultimately remedies for victims” (Bassiouni, 2011, pp. 24-25).

O International Human Right Law Regime (IHRL) aplica-se aos Estados e a sua principal missão é a protecção destes face ao terrorismo[6]. “The first, second, and third generations of human rights under IHRL are not absolute rights that can be claimed by the protected person or persons against other individuals or organizations whether they be IGOs, NGOs, or business legal entities (with some exceptions)” (Bassiouni, 2011, pp. 26). Durante o combate ao terrorismo, os Estados acabam, na maioria das vezes, por infringir alguns direitos humanos básicos.

O International Criminal Law Regime (ICL) tem em vista o combate à tortura[7], Para tal, utiliza convenções (como foi o caso da Convention Against Torture and Other Cruel, Inhuman or Degrading Treatment or Punishment – CAT –, em 1984), onde os participantes se comprometem a combater todo e qualquer tipo de tortura.

Por último, o International Humanitarian Law Regime (IHL). O IHL aplica-se à protecção de certos indivíduos, alvos ou meios utilizados durante o curso de conflitos internacionais ou não internacionais, apesar de não se estender a conflitos de origem interna. Mesmo assim, “conflicts can shift from primarily internal to international and during this shift multiple legal regimes are applicable” (Bassiouni, 2011, pp. 34).

O leitor sabe que eu não gosto de estatísticas mas são elas que demonstram se estamos realmente perante uma tragédia[8]. E as estatísticas dizem-nos que o trabalho da justiça penal internacional concedeu 125 amnistias num total de 313 conflitos ocorridos entre 1945 e 2008, sendo que desses 313 conflitos, o mundo viu-se a braços com 92 milhões de mortes e 727 processos internacionais. A comunidade internacional tem falhado para com os seus indivíduos, condicionando o desenvolvimento e respeito dos direitos humanos.

É, por isso, necessário terminarmos com estas seis conclusões:

  1. As disparidades económicas entre classes vão aumentar sem precedentes. O fosso entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento vai ser cada vez maior, estimando-se que afecte cerca de um bilião de indivíduos.
  1. A legitimidade do poder dos Estados deixará de derivar da protecção das liberdades liberais democráticas.
  1. Os factores sociais e económicos irão levar à falência 40 dos 194 Estados existentes. Normalmente, é dentro destes Estados falhados que surgem os conflitos internos, acabando por necessitar de intervenção internacional, o que implica elevados custos financeiros e humanos.
  1. A tensão contemporânea entre direitos humanos e segurança é uma reminiscência das tensões históricas entre o exercício do poder dos Estados desde sempre até o século XIX e o reconhecimento dos Direitos Humanos desde a Segunda Guerra Mundial. Nos dias que correm, ninguém argumenta que os Estados, por serem Estados, não têm o direito de matar arbitrariamente uma pessoa ou se utilizar o método da tortura.
  1. Os contornos de uma nova fase histórica dos direitos humanos já são identificáveis. Esta deverá incluir uma nova mudança de paradigma da protecção dos direitos humanos individuais, tentando conciliar com a predominância de interesses do Estado sobre os de indivíduos, como era o caso antes da Segunda Guerra Mundial.
  1. Os direitos humanos, tal como os conhecemos desde o fim da Segunda Guerra Mundial, acabarão desgastados com tanta violação dos mesmos. O seu conceito, enquanto protectores da dignidade humana, tornar-se-á o “ethos” e o “pathos” dos mais de sete biliões de indivíduos que habitam o planeta Terra.

Feliz Dia Internacional dos Direitos Humanos! Estejam eles onde estiverem…

[1]Two Treaties of Government”.

[2] Conflito à escala mundial desde 1939 até 1949.

[3]Tentativa de Adolf Hitler e do regime nacional-socialista alemão de exterminar sistematicamente, de forma burocrática e industrial, sob a égide do Estado, os cerca de 9 milhões de judeus da Europa. (…) Aproximadamente (…) 2/3 foram de facto assassinados, a tiro em massacres colectivos, em camiões e em câmaras de gás dos campos de extermínio da Polónia ocupada pela Alemanha,no que os nazis chamaram «solução final da questão judaica»” (Mendes & Coutinho, 2014, pp. 250-252).

[4] Movimento cultural do século XVIII, onde a elite intelectual da Europa tentava mobilizar o poder da razão, de maneira a inovar o pensamento e conhecimento da sociedade trazidos da época medieval.

[5] Momento imediatamente após a queda do Muro de Berlim (1989) e o colapso do Bloco Soviético (1991).

[6] “Any action (…) that is intended to cause death or serious bodily harm to civilians or non-combatants, when the purpose of such an act, by its nature or context, is to intimidate a population, or to compel a Government or an international organization to do or to abstain from doing any act” (United Nations, 2004).

[7]Qualquer acto pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por acto que ela ou terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam consequência unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram” (Nações Unidas, 1984).

[8]Uma única morte é uma tragédia; um milhão de mortes é uma estatística” – Joseph Stalin