A humildade (ou a falta dela) – Rafael Coelho

Com bastante frequência nos dias quotidianos, presenciamos situações em que seres humanos se tentam impor ou tentam impor a sua vontade a outros. Em determinadas situações e salvaguardando os devidos e necessários respeitos, há muitas vezes que passar recados, ordens ou normas; aqui e desde que sejam feitas dentro da legalidade, não haverá nada a opor. O problema reside quando se tentam passar regras, normas ou ordens, cujo conteúdo e oportunidade não geram consensos. Não se pretende obviamente que todos concordem com tudo o que se faz e se diz, no entanto, se houver uma preocupação por parte de quem “manda”, procurar o máximo de consensos, haverá por certo mais tolerância e compreensão por parte de quem “é mandado”.

Diariamente há episódios a narrar que confirmam esta alegação. Desde a política ao desporto, passando pela cultura e por algumas instituições principalmente públicas (mas também em privadas), assiste-se hoje em dia a autênticas caricatas e deprimentes cenas que em nada ajudam a aumentar o estímulo, ânimo e motivação do povo.

Depois, a par de uma sintomatologia existente por estas alturas de inércia memorial. Muitos dos atores públicos pensam ou acham que o povo não tem memória e o que foi dito e afirmado ontem, amanhã não será lembrado. Enganam-se! O povo recorda-se perfeitamente de tudo o que ontem foi dito e está à espera que seja feito ou cumprido.

Quando se reflete sobre estas temáticas, vêm certamente à memória dos leitores de forma imediata, promessas de políticos não cumpridas – não só dos atuais como também dos anteriores; mas também de dirigentes desportivos (que não deixam também de ser políticos); de dirigentes sindicais (que também são políticos); de diretores ou gestores de empresas e de serviços públicos (que igualmente são políticos); de chefes e/ou patrões (alguns) que, por fim, têm igualmente tiques de políticos.

Na política: assistimos hoje em dia a um governo que quando esteve na oposição, se comportava de uma forma e que agora estando no poder, se comporta de outra. Apesar de se sentir que o estilo de governação é menos arrogante – sim, menos arrogante, não se lembram? – que o anterior, nota-se também que não existe uma abertura mais efetiva ao diálogo com a oposição construtiva, como aquele que seria necessário no atual quadro. Por outro lado, vemos uma oposição (falamos aqui dos partidos chamados do “arco da governação”), que se mostra sempre “de beiço” por não ser consultado, por não serem atendidas as suas propostas, etc. Mas o povo não se esquece assim tão facilmente quem são os responsáveis que nos últimos 25 a 35 anos colocaram o país no rumo que nos trouxe até esta ilha deserta, principalmente os disparates dos últimos 12/13 anos.

Falta de Humildade, excesso de arrogância, desmemorização do povo.

No futebol, assistimos constantemente da parte de alguns dirigentes e treinadores um excesso de arrogância e falta de humildade – já se percebeu que os que mudaram de atitude, tiveram melhorias no rendimento dos seus atletas e dos seus resultados. A humildade demonstrada nos jogos europeus, tem proporcionado bons resultados na Europa, principalmente ao Benfica nesta época. De salientar ainda a humildade de um Paços de Ferreira, de um Sporting de Braga, de um Estoril, que têm feito milagres com orçamentos tão díspares dos chamados “grandes”. Ao que parece e, se não houver mais problemas desportivos, o Sporting vem lentamente recuperando a sua credibilidade e o seu estatuto, mais um vez com o trabalho de Jesualdo e a humildade de jogar com meia equipa de “bês”.

Na cultura: quantos são os autores e intérpretes de qualquer arte – música, escrita, pintura, escultura, arquitetura, design, moda, representação – de quem nunca se ouve falar, dos quais nunca se vêm obras nos lugares mais dignos, como grandes eventos, museus, salas, apenas porque a estrelinha da sorte nunca os tocou ou porque não tiveram amigos influentes no meio ou na comunicação social? Quantos desconhecidos fazem excelentes obras de arte e ficam no anonimato? E por outro lado, quantos são aqueles que aparecem apenas porque tiveram os amigos certos nos locais apropriados e no tempo justo? Mesmo que deles não se vislumbre quaisquer qualidades extraordinárias ou sequer um pouco acima das do cidadão comum? Mais uma vez a humildade dos que lutam contra a corrente, dos que remam contra as marés decide quem vai à frente, quem chega em primeiro. Não falo de nomes, mas certamente o leitor irá identificar o que se pretende aqui enunciar. O mundo seria muito mais verdadeiro, se existisse uma igualdade em que todos os seres tivessem humildemente a oportunidade de fazer aquilo de que gostam e querem, sem a imposição da arrogância de uma sociedade fria, calculista e individualizante, na qual só o eu conta, enquanto o tu e o ele cada vez se encontram mais distantes e mais desconhecidos.

 

Crónica de Rafael Coelho
A voz ao Centro