A medicação – Mara Tomé

Face a alguns comportamentos graves que as piolhas demonstravam, a médica que as avaliou, na 2ª consulta de desenvolvimento, nem hesitou e receitou risperidona (que tem como nome de marca Risperdal ® ou outros assim semelhantes) e que, na realidade, é um antispicótico muito utilizado no tratamento de esquizofrenia, doença bipolar e autismo. Posto desta forma é assustador e sente-se logo a repulsa de “contaminar” os nossos filhos com um medicamento destes. Mas, tal como em muitas coisas da vida, há que analisar, de cabeça fria, as vantagens e as desvantagens…

As piolhas, no auge do seu descontrolo, andavam sempre com diarreia – o que me levava a dietas alimentares para a controlar -, a hiperatividade era um pesadelo, as noites dormidas à pressa e, mais grave que tudo, havia imensos episódios de auto e hétero agressão (as piolhas mordiam-se nas mãos e dedos, arrancavam cabelo, jogavam-se ao chão, batiam com a cabeça ou punhos nas paredes… Quando tinham um meltdown (aquilo a que costumo chamar “birra autista”), piorava substancialmente e a nossa única preocupação era evitar que se magoassem). Começou-se, então, com uma dose quase inexistente (0,1 ml – tão mínima que até custa marcar na seringa) mas que operou verdadeiros milagres. Eu e o pai aceitámos nestas condições: dosagem mínima com o mínimo de efeitos secundários e nada de zombies em casa. E aceitámos porque minimizou imenso os efeitos da ansiedade: maus sonos, diarreias constantes, estômagos irritados e muitos vómitos, maior controlo dos momentos de concentração, menor agitação a nível global. Passaram a ter mais momentos de concentração o que lhes permitiu uma maior aquisição do que trabalhamos com elas e com maior qualidade, continuam agitadas a ponto de muita gente me perguntar se são hiperativas (daí se vê!) mas já não trepam às paredes (não estou a exagerar) nem usam gavetas como escadas para chegar à prateleira mais alta da sala, já não desarrumam tudo sem saber por onde começar a  brincar embora continuem a sentir necessidade de correr e correr e pular e pular e gritar. E, quando essa necessidade está satisfeita, passa. A risperidona não as transformou, apenas as aliviou um pouco. Continuo a notar que a maior diferença, a mais visível de todas, foi o fim das diarreias constantes, um alívio para todos: deixaram de andar tão cansadas, as dietas alimentares pobres em gorduras e laticínios e afins acabaram, o rabo assado desapareceu, o desperdício de fraldas – na altura, não estavam desfraldadas- foi muito minimizado. Esta mudança viu-se em  apenas 2 dias. O resto já demorou mais a notar, claro.

Esta dosagem foi ajustada meses depois para 0,3 ml, por causa do peso. E, recentemente, após dois anos sem ajustes, houve necessidade de aumentar para 0,50 ml e reforço de 0,25 ml, ou seja, neste momento, com cerca de 18 kg de peso e 5 anos, as piolhas tomam 0,50 ml de manhã e 0,25 ml ao final da tarde. E sim, continuo a notar melhorias e vantagens. Porquê? Porque noto que todos nós ganhámos qualidade de vida; as estereotipias e agressões/mutilações estavam a regressar e, não há pai nenhum no mundo digno desse epíteto, que goste de ver o seu filho a agredir-se; os focos de atenção eram ao ritmo do ponteiro dos segundos e as piolhas pareciam estar em constante fastforward. A evolução delas foi tão boa que, em março deste ano, até experimentámos – a contragosto do pediatra – retirar a medicação por completo. E aguentámos tudo sozinhos, ignorando os sinais que teimavam em regressar, pensando que estaríamos a ir pelo caminho mais rápido se retornássemos à medicação, que não voltaríamos atrás. 3 meses. Em maio, regressámos à risperidona porque o sofrimento delas não valia a nossa recusa e teimosia e, felizmente, mais uma vez, notámos que a ansiedade diminuiu e as agressões também. O que nos fez mudar de ideias? Foi quando recebi um telefonema do Jardim de Infância a pedir-me para ir buscar as piolhas porque tinham passado o dia aos gritos e a tentar bater com a cabeça na parede. Quando lá cheguei, quase tive dificuldade em reconhecer as minhas filhas: olhos inchados e vermelhos que quase não abriam, cabelo completamente desgrenhado e com espaços em falta, arranhões…

A maioria das pessoas que me contacta manifesta o seu desagrado face à toma de risperidona.  Tem sido dos medicamentos mais estudados dos últimos tempos e, apesar dos seus efeitos secundários – que não se manifestaram nas piolhas, felizmente -, das bocas parvas/indiretas que algumas pessoas possam mandar acerca de este ser o caminho mais fácil, etc., interessam-me os benefícios que daí advêm. E o maior benefício, aquele que mais se destaca desde o primeiro dia de medicação, é a redução imensa dos níveis de ansiedade e da auto/heteroagressão. Conheço imensa gente que toma medicação diária, bem mais adversa: a minha mãe, para evitar ter ataques epiléticos; o piolho de uma amiga toma aspirina todos os dias para o seu coração; a irmã de uma amiga toma medicação para compensar a ausência de tiroide; eu tomo a pílula há mais de 10 anos sem pausas (só parei na gravidez)… Tudo isso tem efeitos secundários mas os benefícios e as compensações que esses medicamentos trazem, transformam as nossas vidas para melhor.

Não vou recriminar-me por ter tentado verificar se a medicação era mesmo necessária. Não vou certamente recriminar-me por verificar que ocorreu exatamente o oposto. Tal como nos disse o pediatra que as acompanha, “vale mais uma dosagem mínima constante que lhes traga estabilidade, mesmo que isso implique tomar medicação mais tempo“. Qualidade de vida é uma exigência, é um direito que assiste às nossas piolhas. E nós vamos dar-lhes essa qualidade de vida.

Crónica de Mara Tomé
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