Acerca de “A Cidade e as Serras” – Eça de Queiroz

“A Cidade e as Serras” é de todos os livros que li de Eça de Queiroz um dos que mais gostei (na verdade não há nenhum de que não tenha gostado…).

O brilhante autor português, José Maria Eça de Queiroz (1845-1900), conhecido também por Eça de Queirós, nascido na Póvoa de Varzim, e falecido em França, vítima de tuberculose ou de uma fase final da Doença de Crohn, consegue neste livro remeter-nos para uma mensagem tão simples, mas tão profunda, quanto bem escrita, a todos os níveis.

Relata-nos a história a vida de um jovem, pertencente às elites sociais e intelectuais da época, nascido em Portugal, a residir em Paris quando começa o enredo, que não encontra na sua vida quotidiana verdadeiro prazer.
O seu entretenimento é conviver entre aqueles e aquelas que são os da sua classe social, servido por outros que para ele trabalham, e não há nada, absolutamente nada, que não passe pela estupidificante e asfixiante vida de fartura e de aparência.

A par e passo das novidades para a época, entre as quais o telefone, o elevador, e outros engenhos bem desconhecidos do povo em geral, o jovem compra tudo e tudo tem, e se a sua alegria é o ter e o mostrar o que vai tendo, as suas frustrações são as pequenas avarias dos ditos engenhos, quando num qualquer jantar, onde os pretendia evidenciar, quase como que de propósito para o envergonhar perante os distintos convidados.
O jovem encontra-se quase permanentemente aborrecido, tal não é o tédio, e a vida superficial na cidade da luz e da intelectualidade revela-se cada vez mais distante do Ser, pois o Ser esconde-se por entre o Ter e o Haver, sem nada mais que lhe possa valer.

A certa altura do enredo, o próprio mordomo que o acompanha desde sempre, com o nome de Grilo, responde a alguém, perante a pergunta acerca do motivo da apatia e desinteresse pela vida em geral por parte do jovem, qualquer coisa como que “o mal do jovem é a fartura”…
Pois assim é.
A fartura e o “tudo ter”, quando oprime e não deixa ser, revela-se mais do que um enfado, um enorme mal, tanto ou mais que o excesso de pobreza.

Grilo, o mordomo, faz-me lembrar por instantes o verdadeiro grilo falante (a consciência) que acompanha a personagem “Pinóquio”, o boneco de madeira que procura conseguir ser humano, tão conhecido das histórias e contos infantis de todos os tempos, mais pelo seu nariz de mentiroso e pela ingenuidade, do que pelo valor genuíno e afectivo de que, para mim, o conto se reveste fortemente…
Pinóquio só se torna humano quando consegue finalmente “Ser”… Consegue-o somente pelo afecto que o seu criador, o seu “pai”, lhe devota, e apenas quando, finalmente, consegue devolver esse afecto em autenticidade e verdade.

Voltando ao nosso livro, para além da deliciosa leitura que sem dúvida é, ele traz-nos este contorno diferente, como só Eça nos consegue transmitir, e que é na verdade o mais profundo preenchimento do conteúdo de cada uma das suas histórias: a dimensão ética do humano e do que nele há de melhor e de pior, numa história simples, mas que tão bem retrata as pessoas e o que sentem, e o que são.
Neste caso, Grilo diz tudo quando arrisca dizer a verdade: o jovem sofre de fartura…
E a fartura incomoda àqueles que buscam uma vida de afectos reais e verdadeiros, mesmo os que disso não se dão conta. Neste caso, pode tornar-se de facto um enfado, e, mais ainda, é impeditiva do verdadeiro progresso, aquele que só depende do próprio, antes de mais.
Reveste-se pois a fartura, da vida efémera e da presença das relações superficiais.
Grilo, tal “Grilo falante”, parece a voz da “consciência”… Aquela consciência que reconhece na fartura a causa do tédio, associada, naturalmente, e numa interpretação minha absolutamente livre, às relações vãs e efémeras, desprovidas de autenticidade, que se tornam a realidade em torno das vidas fartas, deixando no próprio, quando este tem a capacidade de se silenciar e de se ouvir, uma sensação de um imenso vazio (que aparece sob a forma de tédio aos que estão menos atentos e não ouvem o seu interior).

Numa dada altura da história, o jovem viaja para Portugal, da cidade de Paris para uma zona serrana bem portuguesa, deixando o conforto, e os “últimos gritos” em engenhos e modernidade, na sua casa nos Campos Elísios, e indo para um Solar de família, antigo, e supostamente em remodelação nos meses que antecedem a sua chegada.
Sucede, porém, que, ao jovem, todas as voltas são trocadas, desde a viagem de comboio atribulada que o faz ficar sem vários dos seus pertences e comodismos, sem o mordomo e serviçais, viajando sozinho com o seu amigo, com a roupa que traz no corpo desde Paris, até encontrar o Solar sem obras feitas, utilizado como armazém pelos trabalhadores das terras, por não se saber que a sua chegada estava para breve, tudo lhe corre mal.
Por vários incidentes e imprevistos, assim decorre a sua viagem e a chegada ao seu país natal, e, por isso, o jovem planeia ficar então em Lisboa, até que tudo esteja resolvido.

Tal facto, no entanto, não chega a acontecer.
É num quarto simples e de uma tranquila humildade e leveza, de uma zona daquele Solar, que o jovem recupera o seu Eu, a sua força e a sua paixão pela vida, deixando para sempre de lado o tédio e o cansaço tão fatigante de uma vida oca e tão desprovida de sentido quanto recheada de engenhos, dinheiro e conforto.
O jovem não ficou pobre, logicamente, mas é precisamente o contacto com a simplicidade que o leva a uma reflexão profunda e ao encontro de si mesmo e do Outro.
Consegue acompanhar as obras de forma próxima e empenhada, prestar homenagem aos seus, quando da transladação que o trouxera de volta a Portugal, e acompanhar de perto trabalhadores das terras, indo ao seu encontro.

Não fica indiferente à pobreza e miséria do seu semelhante, quando o encontra em precárias condições, como sucede com uma das suas trabalhadoras, doente, de cama, sem recursos e sem apoios, e resolve-se a fazer uma verdadeira mudança, a que muitos chamariam de revolução, por decidir fazer casas dignas para todos os que trabalhavam as suas terras, mobilá-las, dar-lhes roupas quentes, e acederem a direitos tão básicos e inexistentes à época, como serem assistidos por médico, coisa rara para quem não possuía recursos financeiros.
O jovem consegue recuperar-se e recuperar aquilo que de melhor há no homem, quando quer para os outros o que quer para si, quando se iguala aos que trabalham as terras que lhe foram deixadas, quando opta pela simplicidade à sua volta e em trazer, aos outros, direitos, que antes não podiam alcançar.
Com isto, Eça torna a sua personagem principal, o nosso jovem, numa pessoa de enorme valor. Aquele valor que só alguns têm, aqueles que usam do seu poder para ajudar os que menos têm, em vez de por eles nutrirem uma profunda indiferença, ou, pior ainda, abusarem do poder.

Claro está que, com este volte face na sua existência interior, e a partir da acção que daí resulta, tudo à volta do jovem muda.
Mesmo avisado, pelos demais, de que o que ele fazia era daquelas coisas que não podiam ser feitas, (porque, argumentavam, a pobreza era parte integrante da vida de alguns, tal como a fome e a miséria também), o nosso jovem, Jacinto de seu nome, não desistiu de usar o dinheiro, que tinha em abundância, para ajudar os que menos possuíam.

Não podia mudar as Leis, nem era essa a sua função. Todavia, fez o que podia para mudar muito à sua volta.
E, se bem o pensou, muito melhor o fez e concretizou.
Pediu a um Arquitecto de Paris para fazer o projecto de uma escola, que ficaria junto à capela, restaurada também.
Tornou-se por muitos considerado um benfeitor, e mesmo o místico João Torrado, ervanário e adivinho, habitante singular da natureza, no alto da serra, dizia pelo povoado, onde a acção decorre, que o nosso Jacinto era El-Rei D. Sebastião regressado.

A prosperidade não deixa Jacinto, pelo contrário, vai aumentando, e conhecerá ainda uma jovem serrana, de seu nome Joaninha, cuja simplicidade e cores saudáveis, bem distante das jovens pálidas e requintadas de Paris, imediatamente o apaixona.
Também Jacinto passa a viver numa simplicidade confortável, por opção, e finalmente casará com Joaninha.
Em poucos anos, o solar de Tormes fica, não só maravilhosamente restaurado, como recheado dos afectos sinceros e dos risos das crianças do nosso casal.

Grilo, que teria chegado, algures na nossa história, depois das viagens trocadas que o haviam levado a outras paragens, dirá pois: “Aqui, Sua Excelência brotou.”
E na verdade assim foi.
Tal como Pinóquio, e permitam-me a livre analogia, se torna humano pelo afecto verdadeiro, pela capacidade de empatia que conquista, também Jacinto se torna mais humano a partir do momento em que desenvolve a capacidade de empatia e os afectos verdadeiros.

Empatia não é representar uma causa em que se acredita, por vezes mais por valores do ego e de bem parecer, do que pelo motivo que deveria ser: o Outro.
Empatia é conseguir colocar-se no lugar do outro, sendo o outro diferente de mim, sem que isso se revista de um qualquer reconhecimento egoísta. É pelo outro, e não pelo próprio.
É ir ao encontro das necessidades do Outro, do que ele precisa, e não ao encontro do que o próprio acha por um qualquer motivo que ao Outro faz falta.

Num claro aparte, pessoal, sobre Empatia, acrescento que é talvez por isso que, por vezes, as pessoas não aceitam a crítica que supostamente pretende ajudar, ou a ajuda de alguém…
É que a ajuda tem de ser antes de mais sentida como tal por quem dela precisa, se é que precisa, e não por alguém que, de forma absolutamente egoísta e desprovida de empatia, talvez apenas para se valorizar, oferece ajuda onde ela não faz qualquer sentido…

Num exemplo breve que vos dou aqui, permitam-me a simplicidade e a ironia, a ajuda sem empatia é como oferecer a alguém que está cheio de frio e sob uma chuvada forte, umas maravilhosas sandálias, num belo embrulho, apenas para que vejam como é bondoso, e porque acha, na melhor das hipóteses, que os sapatos do outro estão gastos…
Acima de tudo porque o próprio, sem empatia, está agasalhado e a coberto da chuva, nem por um momento querendo ver e perceber a verdadeira necessidade do outro.
Em vez de oferecer um chapéu de chuva e um forte agasalho, porque o outro tem frio, ou uma “boleia” de carro, porque vai a pé à chuva, oferece aquilo que acha num repente, e que não faz sentido nenhum para quem precisa.
Curioso que pode até considerar mal agradecido o Outro, que não é capaz de gentilmente agradecer e enaltecer as lindas sandálias que lhe foram ofertadas, ou a qualidade inequívoca de quem lhas deu, quando era isso que, no entender do egoísta, deveria fazer.
É que aquele que está agasalhado e a coberto da chuva, deve pensar empaticamente na necessidade do outro, e não na sua.

Infelizmente muitos agem frequentemente assim, na sociedade de ontem como na de hoje, pelo seu interesse pessoal e vaidade, sem qualquer empatia ou humanidade, sem qualquer generosidade.
Vive-se em muitos casos de aparências e vaidade.

Regressando ao nosso “A Cidade e as Serras”, Jacinto demonstra uma nova e profunda empatia, percebe e sente as necessidades dos outros à sua volta, dos trabalhadores e suas famílias, e depois, por valores humanos, deseja ajudá-los, naquilo que efectivamente são as necessidades reais daquelas pessoas.
Jacinto troca a vaidade dos “engenhos da moda”, o “último grito”, e os jantares caros que oferecia na sua casa em Paris, pela empatia e o desejo sincero de ajudar os que mais precisam, naquilo que lhes faz de facto falta – a única forma real de empatia.

Eça, sublime e astuto, mostra nesta sua história, para mim absolutamente maravilhosa, numa escrita brilhante e num retrato perfeito da época, como a efemeridade e o luxo tomam conta das pessoas e as escravizam…
Mostra também, e mais importante, como aqueles que podem, apenas os que o conseguem, encontram o tédio nessa existência vazia, e são capazes de transformar imprevistos e adversidades várias, planos que lhes são trocados, na força motriz que os leva à verdadeira mudança interior e ao encontro de si mesmos e do Outro.
Mais ainda, mostra-nos, que a mudança interior resulta do confronto do Eu consigo mesmo e com o que está à sua volta, do Eu em relação com o mundo, e só depois se torna consciência interna.
Mostra ainda que nada é estanque, e que o Eu renovado, devolve ao mundo o resultado da sua mudança interna, fazendo dela, não uma elevação egoísta, mas uma profunda transformação com eco no que o rodeia, um eco muito profundo, que é capaz de mudar tudo à sua volta.
Assim é, na verdade.

E muitos de nós podem, (e quem sabe até o devamos fazer), mudar interiormente, progredindo, aproveitando os volte faces da vida para a transformação, e torná-la dinâmica: Do Eu para o Mundo, como antes foi do Mundo para o Eu, e do Eu para o próprio. Fazer com que a nossa mudança interna permita depois o ressoar no mundo à nossa volta, e, aqui sim, nada mais voltará a ser o que era anteriormente… Nem para o próprio, nem para o mundo.
E assim nos influenciamos uns aos outros, desejavelmente, cada um à sua maneira, podendo chegar onde nos é permitido, por vezes nas mais pequenas mudanças que podem fazer a diferença na vida quotidiana, para melhor.
Costumo dizer que a Literatura tem uma dimensão psicológica do homem que nenhum livro de psicologia consegue possuir. Eça, na sua escrita, tem sem dúvida um alcance social, político e psicológico, muito para além do romance que se lê.
É aquilo a que chamo, com profunda humildade perante a Obra e o autor, Literatura, com maiúscula, porque É, para além do que se lê.
Mas o brilhantismo da escrita, da criação literária, não é por isso menor, pelo contrário, e é uma deliciosa leitura.
Eça, e a sua Obra, um bem imenso ao Mundo: A ler e a reflectir!

Nota da Autora:
O livro “A Cidade e as Serras”, original, encontra-se editado pelas mais diversas Editoras, e é adequada a sua leitura para adultos e jovens.
Recomendo vivamente esta leitura, ou até reler, em muitos casos.
Pessoalmente, quando volto a ler um livro, olho-o sempre de forma diferente…
Acho que todos nós.
Para as crianças mais novas, existe uma adaptação extraordinária, a meu ver, que, em Portugal, pertence às “edições quasi”, apoiadas pelo jornal semanário “Sol” e pelo Millennium BCP, e que foram vendidas juntamente com algumas das edições deste semanário, penso eu, mas que podem ser encontradas à venda ou encomendadas na MBooks, a preços excelentes, já que esta tem como missão levar a cultura a todos, a preços acessíveis, tendo pelo menos uma página na internet (creio que uma para Portugal e outra para o Brasil), e fazendo feiras e stands de vendas em vários locais, como galerias comerciais, portos de recreio com zona comercial, jardins. Por exemplo, costumam estar na Marina/Porto de Recreio de Oeiras e nos Jardins do Casino de Estoril, onde aceitam encomendas.
Esta obra adaptada de “A Cidade e as Serras” pertence a uma colecção de clássicos, e existe ainda uma outra colecção do mesmo género, para quem quer dar a conhecer os grandes autores portugueses, em clássicos da literatura, muito fiéis aos originais mas com uma linguagem mais fácil e centrando as temáticas no que é essencial da Obra – adaptada para os leitores mais novos.
É bom que os adultos conheçam a Obra original ou leiam antes as adaptações, porque a linguagem de alguns autores, Gil Vicente, por exemplo, dentre outros, ainda que adaptada, pode conter termos menos convenientes, ainda que não chocantes, para os pequeninos, pelo seu estilo linguístico, inserido na época e no género literário em questão.
Não é o caso das obras de Eça, muito menos desta em particular: a linguagem é de excelência.
A obra adaptada deste “A Cidade e as Serras”, para os mais novos, deve-se a António Torrado, e as ilustrações são de Helena Simas. Esta adaptação, eu pessoalmente, recomendo vivamente.

– Este artigo de opinião não foi escrito ao abrigo do Novo Acordo Ortográfico.-