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Porque, decididamente, uma crónica ao contrário, não tem de ser necessariamente o contrário duma crónica. Andava às voltas para dar o começo perfeito a uma crónica, que até já sabia como ia terminar, quando tive a ideia de fazê-la ao contrário. Por que não? Começá-la pelo fim para acabar precisamente na primeira frase do parágrafo que habitualmente serve de ponto de partida.

Eram vinte e três horas quando Mariana, feliz pela conversa ao telefone com um antigo namorado, com uma frase lacónica anunciou ao marido que se preparasse porque ela nessa noite não dormia em casa.

Um quarto de hora antes, exultou com o resultado dum telefonema que a deixou inicialmente intrigada. Àquela hora ligarem, não podia ser coisa boa. Não havia ninguém no escritório, a menos que fosse um pedido de socorro de alguma colega que não conseguia dormir atormentada por uma insónia. Era um homem, mas custava-lhe identificar o dono da voz. Por mais que pensasse, nem com a pista de que era alguém conhecido, nunca em tão curto espaço de tempo conseguiria associá-la a um nome, embora tivesse plena consciência de que jamais se deveria esquecer o nome de uma pessoa que começa uma conversa chamando-nos querida.

Um homem que tanto podia ser alto como baixo, gordo como magro, ter olhos azuis ou castanhos, o importante era que, à parte a familiaridade que revelava, a tratava com uma cortesia que era meio caminho andado para conquistar uma mulher e convencê-la a responder que sim a toda e qualquer pergunta que fizesse.

Mostrou-se surpreendida, mas quando percebeu quem era, um antigo namorado dos tempos da Faculdade, reagiu com enorme satisfação, alternando entre a comoção e as lágrimas, ante a expectativa de ir ao seu encontro, para matar saudades a partir de quando deixaram de se ver, por defenderem pontos de vista divergentes apenas coincidentes em que, para reatar o namoro, teriam de aprender a ser mais tolerantes.

De manhã, bem cedo, Mariana e o marido iniciaram uma discussão que se prolongou até depois do almoço. Teve a ver com ele recusar o convite para um fim-de-semana a dois na casa de campo dumas amigas lésbicas que moram no Cartaxo. Um casebre, dizia ele meio a brincar, argumentando com a falta de condições, mais preocupado em que não houvesse Tv cabo para acompanhar os jogos, do que em beneficiar de não ter de ouvir um par de comentadores a denegrir os outros clubes.

Teria sido para ela, sobretudo uma prova de que, ao invés de dar-lhe motivos para andar descontente, ele quisesse apostar na relação e cumprisse o propósito de um homem levar para um fim-de-semana romântico, uma mulher com o intuito de ficarem confinados no quarto, como se receassem o ressurgimento da terceira vaga da pandemia.

Mas ainda que tivesse surgido com um mês de antecedência, já teria vindo com um ano de atraso, a ideia idílica de juntá-los tentando salvar o casamento, o qual naquele momento e ao contrário dos primeiros anos, assentava em alicerces tão frágeis que não poderiam de servir de modelo de construção nem para pôr de pé uma barraca.

As desconfianças começaram há seis meses. À época, o marido de Mariana chegava tarde de casa. Não começou por ser todos os dias, embora acontecesse constantemente às sextas-feiras. Nem começou por vir tão tarde que ela em lugar de pôr-se a esperá-lo no sofá enquanto assistia ao episódio duma série, pudesse adormecer e acordar a tempo de assistir ao final de “E tudo o ventou levou”. Isso foi depois. Inicialmente, entrava de mansinho sem levantar ondas, nem fazer barulho a andar como se viesse já com as pantufas calçadas. Se ela estivesse acordada, desculpa-se pelo atraso e enfiava-se na cama, quando não tinha jantado fora, com o estômago leve a pesar-lhe menos que a consciência.

Preocupada porque com tanto que fazer na rua, perdia a vontade de trabalhar em casa, Mariana resolveu um dia pôr os pés ao caminho e surpreendeu-o no escritório, a pôr a escrita em dia com uma colega mais velha, que nunca deve ter gabado ao ponto de achar que poderia colocar um casamento em perigo.

Após conversa demorada, que implicou cedências da parte dele em continuar o trabalho fora de horas, reticente ela lá aceitou perdoá-lo, sem perder o ensejo de lembrar que, para compensar a perda de rendimento pelo fim das horas extras, estava autorizado a arranjar um trabalhinho de fim-de-semana, desde que doravante o não impedisse de estar em casa à hora do jantar.

Recuando mais um pouco, uns seis meses antes fora ela que aceitara o convite da parte de um estranho para jantar. Não se recorda do que comeu, nem onde, apenas de ter entrado de mão dada com ele, num restaurante chique com um empregado à porta tão simpático com os clientes, que era como se dependesse unicamente das gorjetas que recebesse, ter dinheiro para em casa pôr comida no prato.

Trocara breves impressões com o desconhecido numa sala de chat na internet, aonde os homens metiam conversa sem pedir licença, a menos que quisessem dar a falsa impressão de serem ingénuos.

Nesse dia, justificou ao marido a ausência, com o ter de acompanhar a casa uma colega que surgiu com sintomas de sarampo. Nunca soube ao certo se a mentira pegou, mas sabe ainda hoje que se divertiu jantando num lugar tão requintado, no qual os cortinados combinavam com as toalhas de mesa, a penumbra do bar com o secretismo daquela relação, e com certeza, o preço das gravatas de seda dos funcionários com a conta que, no final, obrigaria quem fez o convite a ter de desatar os cordões à bolsa para pagar. Aprender a manejar tantos talheres, adequados às iguarias que iam apresentando, constituía per si um motivo para voltar … e Mariana voltou, até que à terceira foi de vez e acabou com o amante num motel ao qual só se podia ir de carro, apesar de bem localizado numa vila-dormitório dos arredores de Lisboa, porque de noite, quando se lá ia, de tal modo se perdia a noção das horas, que à saída para regressar a casa já não havia transportes públicos a funcionar.

Vale a pena recordar um episódio anterior, no qual Mariana não gostou de saber que o marido se esquecera de comemorar a data em que contraíram matrimónio. Sinal de que as coisas já não andavam bem, chegou o dia e ele nada. Nem um beijo, nem um bilhete, nem uma flor, nem uma saída. Nada. E nos dias que se seguiram a mesma coisa. Vai daí, em consequência ela decretou que durante quinze dias, nem um beijo, nem um abraço, nem um carinho, nem uma apalpadela. Nada, nem uma palavra a explicar e vendo que ele não estava a perceber, furiosa decidiu unilateralmente prolongar por mais duas semanas aquele estado de indignação, que para ele era já de calamidade, à beira de entrar no de urgência.

Apenas um olhar que o marido não esqueceria, porque a imagem de uma mulher à beira de um ataque de nervos vale mais do que mil palavras. Mil palavras que, quase decorrido um ano, na noite do famigerado telefonema daquele antigo namorado, não teriam bastado para demovê-la da ideia romântica de correr prontamente ao seu encontro.

FIM