Afinal é o procedimento

Tem dias em que não conseguimos suportar o estado burocrático do país. Tem dias – quase muitos – em que a papelada se amontoa sobre as secretárias, no chão – encostada às paredes – prolifera por todos os cantos crescendo veloz e avidamente como cogumelos de bolor. Indagamos porquê. Afinal, tem a ver com o procedimento.

Mas tem dias também em que o diálogo entre funcionário público e utente é absolutamente caracterizado como sendo de surdos-mudos. Outros dias tem em que a avalanche de papelada que completa os registos informáticos nos faz pensar se as máquinas vieram de facto substituir o arquivo de papel- ou apenas como um suplemento de vitaminas ao mesmo.

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Nunca tinha percebido, por exemplo, a odisseia porque muitos estrangeiros passam nos serviços públicos – onde têm que permanecer – para resolver a sua vida cá nesta terra. O que sofrem para se legalizar, o tempo de espera, as  esporádicas manifestações de xenofobia de alguns funcionários, entre outros tormentos que passam por interrogatórios infindáveis com propósitos insondáveis e sobretudo com a tautologia do procedimento.

Porque o procedimento é o inferno de qualquer um – por mais bem intencionado que seja. Fazem-se os depoimentos aos quais se anexam as provas – os comprovativos legais que atestam da veracidade da declaração. Depois, vão-se juntando uma catadupa de outros papéis que vão certificando o que já foi certificado e que estão ornamentados com tantos carimbos que atestam o já atestado.

Como se tal não bastasse, vêm as averiguações policiais, os despachos – que não despacham – os lamentos pela falta de pessoal e condições não humanas, a inquirição de testemunhas que vem testemunhar o que já foi previamente provado e re-provado….

O meu país de nascença foi assombrado com papéis. Afinal, julgávamos nós que as máquinas (vulgo computadores) resolveriam a questão das papeladas, mas é mentira: porque se guardam os arquivos virtuais e se continua a gastar papel nas fotocopiadoras e impressoras para atestar o que está atestado.

Ficamos todos a saber muitas vezes aquilo que já se sabia que estava sabido.

Num serviço público perguntei a uma funcionária de ar infeliz e resignado se estava bem. Olhou-me e respondeu: estou à espera da reforma. Que posso esperar agora senão a reforma? Sem palavras para a confortar, senti uma tristeza profunda e uma compaixão ímpar.

Quando, por mero acaso, se interroga o funcionário sobre aquilo que está a fazer – que é obrigado a repetidamente fazer – e se lhe mostra a inutilidade da repetição dos actos, habitualmente o mesmo, com ar semi-envergonhado, conformado ou resignado informa-nos: é o procedimento!

E lá vamos – e estamos – horas e horas nos serviços públicos à mercê do procedimento. Por vezes há paciência; outras vezes nem por isso. Andamos – muitos de nós – a funcionar “dentro da caixa” e com medo de nos interrogarmos sobre aquilo que está no seu exterior.

Tem dias….14344276_10201859116317677_2417630677939448915_n