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África minha: a casa de Wansanjuca

A velha proprietária da casa é gorda e está sentada permanentemente numa cadeira à porta. Quase não se mexe e as pernas incham-lhe. Tem problemas de pressão arterial e palita os dentes descontraidamente. Parece que foi da Polícia. Está há muito aposentada e vive dos rendimentos. Dois guardas tomam conta dela e trazem-na para fora e para dentro. Porque vive num miserável anexo do prédio, encolhida e triste, com o seu avental sujo – onde limpa a boca – de bolsos fundos onde guarda as notas de kwanza, presas numa mola da roupa de plástico ordinário. Dizem os guardas que ela vive para o dinheiro. E que nem a família a visita. Nem os netos. Porque é má, tem mau carácter. Parece feita de ferro e camadas adiposas. Fala alto – é um pouco surda. Dizem que não tem medo de nada, mas não é verdade. Na casa de Wansanjuca, dizem os outros, matou um homem. No cumprimento do dever, enquanto polícia. Um homem da Unita que para aí fugiu. E ela subiu ao primeiro andar, sacou da pistola e atirou nele sem perder muito tempo. E esqueceu o assunto.

Mas a casa de Wansanjuca tinha dois quartos e um deles ficou sempre vazio. Algo se passava ali que nos deixava desconfortáveis. Quando a cama veio, escolhi o quarto da frente, para a varanda e vesti as janelas com cortinas étnicas, compradas na Feira dos Tecidos na cidade baixa. E instalei-me. Por baixo da casa, um restaurante de um português que fazia bacalhau com natas e polvo à lagareiro. Jogava às cartas na esplanada e era bastante simpático. Casado com uma angolana e com dois filhos pequenos que me abraçavam efusivamente e me chamavam de tia.

Na realidade, pouco tempo depois, as crianças que viviam na casa ao lado também me abraçavam e chamavam de tia e traziam o cãozinho branco, um caniche, que ladrava muito mas tinha medo de se aproximar de mim – provavelmente até o cão me chamava de tia ao fim de algum tempo – tantas eram as lambidelas e meiguices que me dava. As quitandeiras do jardim sentavam-se na relva suja e mal aparada, davam de mamar aos filhos despudoradamente e vendiam tomate, rama de batata-doce e pimentos. Tudo em montinhos: montes de tomates a 300 kwanzas; montes de pimentos a 400….a rama era muito barata – assim como os quiabos – e a empregada cozinhava-a no calulu. Naquela tarde não houve trabalho. Era um feriado e deixei-me ficar por casa, vagueando pela sala, olhando o exterior e pressagiando nova trovoada e bátega. Oiço a voz zangada da velha cá em baixo, chamando pelo guarda – para a levar para dentro. Porque vai chover e tem reumatismo. E não quer ficar doente.

O meu olhar recai, curiosamente, no vidro da janela da sala. Um dos vidros da grande janela que dá para a varanda – e que dá para o largo e projecto de jardim – foi, no tempo da guerra, atingido por um tiro. Dizem os vizinhos que a bala entrou pela janela, abriu um orifício no vidro e veio morrer num aquário que estaria por ali. A água jorrou e os peixes morreram certamente no soalho de madeira. O mesmo que piso diariamente, efectuando o trajecto do hall até à mesa de tampo de vidro que coloquei junto da janela. Porque gosto de tomar o pequeno-almoço aí sentada e deixar cair o olhar para a rua. Invariavelmente são os seguranças que vislumbro, vestidos com seus fatos de cor creme, apetrechados de grandes armas, as AK-47, as famosas Kalashnikov, ou outras que se lhe assemelham. Trazem-nas penduradas ao ombro. E não consigo evitar um arrepio quando as vislumbro assim, tão disponíveis. Estão sentados em cadeiras de esplanada, de plástico branco e jogam às cartas no relvado mal aparado do jardim. De vez em quando erguem-se da jogatina, encostam-se à árvore mais próxima e urinam contra ela tranquilamente.

Mas o vidro nunca foi substituído – talvez porque nunca partiu; apenas ficou com o buraco da bala. Esse foi abrindo caminhos no vidro e os seus desenhos assemelham-se a uma teia de aranha esculpida detalhadamente. Disse que iria substituir este vidro. Que não gosto de memórias da guerra na sala da casa de Wansanjuca. Mas o facto é que o vidro aqui se mantém. E hoje, ao olhá-lo, percebo que este orifício por onde entrou uma bala se assemelha ao projéctil de que fui vítima. Com as palavras – que não censuro – de ausência de amor. Que subitamente, uma parte da minha vida se estilhaçou – tal como o vidro da janela da sala.

Os vidros estão encaixados numa estrutura de ferro azul que constitui as portas de correr. As janelas do meu quarto vestidas com cortinas étnicas ostentam também um círculo de uma bala que por aí entrou. E tal constatação vai ao encontro da minha inquietação e perplexidade. Remete-me ao horror da guerra. Dos vestígios da guerra que não têm memória em mim. E percebo, subitamente, a sorte de nunca ter tido a necessidade de presenciar actos tais. De acordar a ouvir a saraivada de balas. De ter de me agachar para não ser atingida. De tropeçar nos cadáveres na rua. De vislumbrar os cães famintos e vadios arrancar pedaços de corpos para comer. Do horror fétido. Porque África não pode condizer com nada disto. Não a minha imagem de África. Bem sei que romântica, ao gosto do século XIX, início do século seguinte. Como no filme África Minha. Porque este continente, nos meus sonhos, tem cheiro de terra molhada. Não de mortos. Mas a África dos defuntos, estropiados, dos homens-que-fogem nus pelas Lundas, por entre sangue e balas, é a África conhecida pelos homens que comigo falam.

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Feira. Huambo

E que não amam. Não conseguem. Perderam a capacidade de amar pelas matas, agachados, sujos e famintos. Combateram nestas guerras e os seus corações empederniram-se. São estátuas de sal perante a Sodoma e Gomorra da Angola no tempo de guerra. Grandes tolos somos nós. Que fingimos não gostar uns dos outros. Porque concordamos em discordar. Fomentamos a desarmonia para melhor nos defendermos. Porque, ainda, aterrorizados perante a nossa fragilidade, perante a sagrada impotência de amar, nos refugiamos nos jogos de palavras cruéis. Mas a culpa é minha. Quebrei uma das regras básicas: nunca criar expectativas.

Consta-se que o fantasma do homem morto no quarto da casa de Wansanjuca invade os sonhos da mulher gorda que foi polícia. Porque sente o seu tempo a chegar, o reencontro com o Grande Pai e não sabe exactamente como há-de lhe explicar que lhe deu gozo matar o homem com a pistola que sacou do coldre e pum!, já está, venham cá buscar este que não o quero a apodrecer no soalho de madeira portuguesa desta casa, aliás, tão bonita. Ripa de madeira corrida. Perseguida pela sua própria crueldade, é do homem morto que tem medo. Que venha para se vingar. Porque a feitiçaria e suas práticas são, em Angola, um prato que se serve diariamente.

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Quitandeira, Huambo (Jardim da Cultura)

E eu, refugiada na casa de Wansanjuca, vestida com cortinas amarelas na sala – e étnicas no meu quarto – enrosco-me no sofá de veludo negro, flectindo as pernas e, em posição fetal, choro. E toda esta cena fede tão violentamente como os cadáveres que se amontoam nas ruas da guerra e Huambo tresanda a morte e a podre. E uma bala perfura o vidro da janela da sala e aloja-se no meu coração. E tudo dói. Tudo se estilhaça como eu própria, como o vidro desta janela. Vou procurar um vidraceiro amanhã. Vou mandar substituir o vidro da janela da sala. Vou, como uma centenária árvore, estender as minhas raízes na terra avermelhada africana e suster-me, com toda a pujança e energia. Para não cair. Para que não possamos cair juntos nesta incapacidade de amar. Para que esta realidade triste não me afecte. Não me contagie. Vou ser uma amendoeira em flor. E quero mesmo plantar-me no vosso coração. Para crescer muito depressa. E deixar-vos estrangulados. Mas sobretudo, não quero que as asas da minha alegria sejam cortadas por via de tudo isto. Não permito!

“…que os homens são anjos nascidos sem asas, é o que há de mais bonito, nascer sem asas e fazê-las crescer, isso mesmo fizemos com o cérebro, se a ele fizemos, a elas faremos (…)”[1].

[1] In Memorial do Convento, José Saramago, Bertrand Editora, p. 137