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África minha ?

“Esta gente não gosta de nós. Suporta-nos, é certo, mas não gosta de nós”- disseram-me.

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Senegal, Dakar

A permanência francesa no Senegal durou menos que um século e as marcas deixadas são tão ténues que jamais poderão igualar às portuguesas em Angola.

A língua, por exemplo. Pouca gente fala e domina a língua francesa – apesar de ela ser língua oficial. E aprendida na escola. Falam orgulhosamente o wolof, sua língua autóctone e quase exigem que o estrangeiro a fale também. Como se o estrangeiro – de quem não gostam, mas suportam – tivesse que reverenciar uma língua universal e divina. O wolof, fora da comunidade Senegalesa, não tem projecção internacional. É tão similar ao umbundu ou kimbundu Angolanos. Os Angolanos falam o português – mesmo que nem sempre o falem correctamente, falam a língua oficial. A permanência dos Portugueses em Angola é praticamente de cinco séculos. E tal aculturação por parte dos Angolanos é bem visível. O francês no Senegal é falado por uma elite mais culta, que lê em francês (os hábitos de leitura, especialmente nos jovens são quase inexistentes) e que o fala por obrigação, em situações pontuais.

Recordo um convite que tive por parte do Senhor Embaixador de Portugal em Dakar para uma recepção nos jardins da sua residência no dia 10 de Junho, dia de Camões. Tinha sido convidado um ministro do elenco governativo Senegalês e este, desenvolveu um discurso. Acontece que não dominava a língua francesa. O seu discurso foi então proferido em francês através de uma outra pessoa. Um dos Senegaleses presentes na recepção afirmou que era uma vergonha, ser um ministro e não falar a língua oficial do seu país.

Confesso que poucas conversas interessantes tive com nativos Senegaleses devido à própria barreira da língua. Ultrapassadas as saudações de Ça va? Ça va bien? pouco mais se discursava. Naturalmente à excepção de alguns casos pontuais onde incluo as minhas conversas com Ibou, um senhor Senegalês que foi professor de artes marciais – que adora o Oriente e tudo o que se lhe relaciona – que lê imenso e fala um francês irrepreensível. Sobre ele escreverei certamente.

Os brancos são chamados de toubab e os toubabs como eu, de pele clara e olhos azuis ou verdes, são identificados erroneamente com os franceses – de quem os Senegaleses não gostam – vestígios e estigmas da colonização. Aliás, o mesmo se passa com os Angolanos e com os Portugueses.

A princípio dizia-me farta deste preconceito africano contra o europeu – particularmente devido ao colonialismo, a escravatura – o que faz com que as culpas daquilo que corre mal sejam sempre imputadas aos “colonos”; mas mais tarde, depois de apurada reflexão, devo confessar que alterei a minha perspectiva.

A questão mais fulcral e basilar relaciona-se com este sentimento de culpa que perpassa pelo europeu face ao africano, como se permanentemente expiasse uma culpa que não tem. Os velhos colonialistas do século XIX já morreram. É como abordar o assunto do colonialismo ou do racismo com luvas cirúrgicas. Temos um temor reverencial de “magoar o outro” e exercitamos continuamente piruetas verbais e comportamentais para não dizermos “isto” ou “aquilo” com receio de ferir susceptibilidades. Assemelha-se à questão dos Alemães e não sabermos como falar do estigma do nazismo. Sempre com pezinhos de lã.

Um Angolano fez o seu Mestrado em Lisboa, numa Universidade conceituada enquanto trabalhou como estagiário num escritório de advogados da capital. Narrava-me evidentemente chocado que uma velha cliente teria ligado para o escritório e queria falar com aquele advogado muito simpático – que era de cor. Expliquei-lhe por várias vezes que a cliente não teve qualquer intuito em ofendê-lo. Antes pelo contrário. Ser de cor é um eufemismo frequentemente usado em vez da palavra negro. Porque, a grande maioria dos portugueses mais velhos, julga que esta palavra é depreciativa, pejorativa e ofensiva. Então utiliza o eufemismo de cor. De resto, quando chamada à atenção sobre a expressão que teria usado para designar aquele advogado que é negro – a senhora ter-se-à sentido altamente constrangida – porque não sabe exactamente como nomeá-lo sem ferir susceptibilidades. Na realidade, é como se expiasse uma culpa que não é dela.

 No Senegal, ninguém se sentiu incomodado por me chamar toubab – nem as crianças. Para eles, sou toubab e ninguém se preocupa se fiquei ou não ofendida. Em Angola sou a pula e também ninguém se preocupa que eu goste ou não da designação. Só o europeu tem esta estranha mania de tratar o africano com luvas de pelica. Porque ainda o infantiliza. O trata com alguma condescendência, por vezes num tom paternalista que traz à memória os ecos de um colonialismo já defunto e apodrecido. Na realidade, uma parte dos portugueses que conheci em Angola, nomeadamente na província onde habitei e trabalhei, sustenta – ainda que tenuemente – os fantasmas do passado colonial e se refere ao Angolano como se ele precisasse sempre do Português para respirar.

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Dakar, Senegal

Angola não é, nem pode ser, feita à imagem de Portugal. São mundos diferentes, com características humanas, sociais, económicas, culturais totalmente diversas. Não é – nem pode ser – um Portugal – ou uma Europa – em ponto maior. Logo, os Portugueses não são os paizinhos dos Angolanos, nem podem/devem portar-se como tal. De resto, aquilo que fizeram durante cinco séculos em Angola não é melhor nem pior do que fizeram outros colonos europeus por essa África fora. Há obviamente muitas particularidades portuguesas, como por exemplo, a nível da construção das casas, das estruturas urbanas (ruas, passeios, bairros, rede de esgotos) que são visíveis – mesmo nas cidades por onde passou a guerra. No Senegal, os franceses não deixaram construção de casas – que eu tivesse visto – e os passeios fora da zona turística são de areia e deixam-nos os pés sujos.

Mas no Senegal que conheci, fui personagem exótica, nomeadamente fora da capital (local onde há mais estrangeiros) e não posso deixar de testemunhar um episódio que me deixou petrificada dada a cor da minha pele – ou seja, por ser uma toubab.

Os Senegaleses, ao contrário dos Angolanos, são muito hospitaleiros no que diz respeito a convidarem os estranhos para suas casas e especialmente para comer com eles. A caminho do sul, para Kaolack, fui várias vezes convidada a confraternizar e comer. Mesmo que não tivesse já fome, noblesse oblige. Tradicionalmente, come-se no chão, ou seja, a bandeja redonda com a comida é colocada sobre uma toalha, no chão e as pessoas sentam-se em redor e comem à mão. Tive quase sempre o privilégio de me darem uma colher e como um dos pratos mais consumidos é à base de arroz, não se torna particularmente difícil comer só com este talher. Um dos membros da família estava no quarto a adormecer um bebé, mas junto a si tinha também uma outra criança de uns três anos. Ao ouvir vozes estranhas na sala, a criança correu nessa direcção e quando me viu, gritou com absoluto pavor e fugiu. Era a primeira vez que via uma toubab ao vivo – e não gostou! Toda a gente riu com muito à vontade e ninguém ficou particularmente preocupado pela reacção da criança ou pelo meu ar absolutamente chocado. Continuámos todos a comer o arroz e eu nem sequer já tinha fome.

De facto, a permanência do europeu em África é uma ambiguidade suportada pela história. Vamos e estamos por lá, fazendo o nosso trabalho. E não há meio-termo: África, ou se ama, ou se odeia. Estranha-se e entranha-se. Mesmos que lá não voltemos, já é tarde demais: algo de nós por lá ficou. Morremos incompletos e quando partimos, aí vamos nós procurar aquilo que por lá deixámos.