Albino, o pagador de promessas

Estava cansado do tremendo esforço daquela caminhada que de manhã, quando começou, desconhecia onde é que ia acabar.

Chamo-me Aníbal e de mochila às costas, amparado num cajado que servia de bengala, percorrera na última hora uma distância equivalente à que, a mim e aos meus dois amigos, faltava andar até entrarmos na localidade mais próxima, onde a primeira coisa que procuraríamos seria o sítio apropriado para dormir.

Mal sentia os pés e, se eles falassem, estou certo de que se queixariam em primeiro lugar do meu andar apressado, passada larga, uma após outra sem temer a possibilidade de, na ânsia de chegar, arriscar-me a dar um passo maior do que a perna e, vindo a tropeçar, desse gesto ousado poder vir a arrepender-me.

Doía-me o direito, a contas com uma pedrinha que se enfiara na meia intrometendo-se entre a planta do pé, na zona do calcanhar e a sola interior dos ténis que por fora, em breve começariam a ficar abaulados se insistisse em assentar no chão o pé de lado para não me magoar, parecendo-se com os pneus daqueles carros que galgam quilómetros com problemas com a direção mal alinhada.

Se não tivesse as pernas tão inchadas por causa do calor, notar-se-ia que estão mais magras desde que parei de fumar há dois anos. À barriguinha retirei meia dúzia de centímetros e reduzi, na cintura, em dois números o tamanho das calças. Lamento é que dos quatro pares de ganga que tive de deitar fora, nem um pôde aproveitar para fazer uns calções. Nessa época, embora fosse mais novo, só fazendo uma cura de desintoxicação podia pensar em vir a caminhar com tamanha desenvoltura, tratamento esse que passava por passar a dormir mais e melhor, por sair à rua para praticar desporto e por melhorar a alimentação, ou seja, alterando profundamente o estilo de vida que levava, deixando de ser sedentário para me tornar nómada, com tanta energia que não sossegava em lado nenhum.

Eu e esses dois amigos de longa data, o Pedro e o Carlos, decidimos, ao fim de ponderarmos sobre se estaríamos preparados para tal, encetar uma peregrinação a Fátima, iniciando a viagem a pé com um trajeto maior logo no primeiro dos três dias previstos, para podermos relaxar um pouco nos dois que se seguiam.

Saímos de Vila Franca de Xira, cidade onde ambos residiam e de onde um deles era natural, com destino a Santarém, onde não pretendíamos ficar além do tempo necessário para dormir, pois a viagem mal começara e, com saudades de casa, já tinham pressa de chegar, com passagem pela vila do Cartaxo para irmos almoçar, onde se impunha, ao restaurante de uma prima da minha mulher, que era casada com uma rapaz que é mecânico na Ford e onde só seria imperioso irmos se fossemos de carro e ele tivesse uma avaria.

Puséramo-nos a caminhar pelas seis e picos, ainda do sol, que haveria de nos fustigar durante o trajeto, o único sinal visível eram as incontáveis flores espalhadas no solo que, na véspera, haviam estado expostas ao efeito calorífero dos seus raios e agora jaziam mortas de sede.

A confirmarem-se as previsões dos rádio meteorologistas para os dias que se avizinhavam, o calor extremo viria acompanhado de uma trovoada seca que tanto poderia significar que estávamos em maio, mês em que elas mais eram frequentes, como querer dizer que nem sempre de todos os fenómenos atmosféricos devemos pensar que sabemos tudo e são incapazes de nos surpreender, e pensei portanto que se já nem a trovoada vem acompanhada de chuva, talvez a subida das temperaturas de dia nos compense com uma brisa fresca à noite.

Metemos por uma estrada nacional onde àquela hora passavam poucos carros e se, de um lado a paisagem era dominada pela flora típica da beira-rio, que neste caso era o Tejo, do outro tinha à vista fábricas ligadas à indústria pesada que deviam ser responsáveis pelo ar pestilento que inspiravam os nossos pulmões, por causa do qual, no regresso, talvez viéssemos por outro lado só para não termos de voltar a respirá-lo.

Passada a primeira dezena e meia de quilómetros, deparámos com um aglomerado de tendas que parecia um campo de refugiados erguido no meio do nada, onde, mais do que o elevado número de pessoas de pé que aguardavam numa fila para receber assistência humanitária, o que verdadeiramente me chocava era o facto de todas elas se expressarem num português fluente como o meu.

Já tinha observado através da televisão, campos de refugiados semelhantes àquele, que mais não eram do que num terreno amplo cercado por uma vedação intransponível, muitas tendas de campanha que acolhiam milhares de pessoas de todas as etnias e nacionalidades, que se atreviam a abandonar os lares e transpor as fronteiras dos seus países de origem para fugirem à fome e às doenças que, em nenhuma circunstância, eu gostaria de ver propagadas por cá.

Mas neste caso, as tendas identificadas do ar por uma cruz vermelha no centro de uma circunferência branca, eram as de lona verde usadas pelo exército português em operações de salvamento e agora adaptadas para apoiar os milhares de peregrinos que se punham à estrada, em direção a Fátima, por volta desta altura, em cada mês do ano, entre maio e outubro. E talvez tivessem sido montadas pelos militares alunos da Escola Prática de Infantaria mas pareciam tão robustamente erguidas, com o ar de uma casa de paredes sólidas, parecendo aguentar uma enxurrada de gente que se empurrasse para lá entrar, que ninguém diria ali não haver mão dos alunos finalistas do ramo de Engenharia.

Seguros de que estavam a fazer o que estava ao seu alcance para auxiliarem os peregrinos, alguns enfermeiros de bata branca conversavam distraídos das pessoas que passavam como se com elas pudesse ir o que sobrava da vontade que tinham de permanecer ali, tão longe de casa e das famílias.

Ao lado deles, havia uma roulotte de petiscos muito justamente chamada “O farsola”, porque o dono era um sujeito de modos abrutalhados, junto da qual parámos para comer uma sande de torresmos que eu levava, à boleia de uma mini fresquinha que, aos meus amigos, teria servido de pretexto para nos demorarmos apreciando aquele momento único se não me tivessem visto comprar e guardar na mochila outras três de aspeto tão delicioso como aquelas para bebermos mais adiante.

Pusemo-nos novamente ao caminho e, com o sol do meio-dia a infletir-me na cabeça, coloquei um boné à marujo que tinha ao centro um emblema do Benfica mas estranhamente era azul. Estava roçado mas não me lembro de me terem dito, quando o comprei, que era tão antigo que devia remontar ao tempo em que, entre os dois clubes hoje rivais dentro e fora de campo, a rivalidade não existia e as relações entre as direções até eram normais.

Com a mão a servir de pala, estreitei os olhos na direção de uma coluna de fumo à distância, que formava uma espécie de ponte aérea entre dois mundos paralelos, o céu e a terra. Por causa do susto que apanhei, devo ter imaginado que ouvia a sirene de um carro dos bombeiros, carregado de apetrechos para combater o incêndio, vir na minha direção e ainda por cima, o meu apurado olfato denunciara uma mudança do vento que trouxera para o nosso lado o cheiro pestilento do mato esturricado. No entanto, continuámos a caminhar e pouco depois já nem disso nos lembrávamos.

Tudo isto foi ontem, domingo e entrámos no Cartaxo ao som de uma fanfarra que tocava, numa homenagem com algumas semanas de atraso, músicas dedicadas aos capitães de abril.

Ninguém começou por estranhar esse facto, talvez porque as pessoas tinham consciência de que algumas das principais conquistas de abril conseguidas pelo povo, não aconteceram logo nesse data e algumas até houve que chegaram com um atraso tão grande, tão desfasadas no tempo, que já ninguém as associou a essa revolução.

À frente da pequena orquestra de uma dezena de instrumentistas, seguia um velhinho que, movendo uma batuta, agitava os bracitos no ar, pavoneando-se com ares de um grande maestro e parecendo respeitá-lo, ao compasso das notas que saíam dos instrumentos como um lamento, os músicos seguiam-no, como se participassem num desfile de protesto pela reposição dos direitos alcançados que, entretanto, os Governos posteriores lhes tinham retirado.

Afastando-me dos meus companheiros, aproximei-me a correr de uma senhora de idade avançada que, diante dos nossos olhos, atravessara com grande desenvoltura a estrada, a fim de lhe perguntar de onde provinha o cheirinho a frango assado que por toda a parte se sentia e que eu estava desejoso de saber se era igual ao que ela levava no saco e, pelos vistos, lhe dava asas. Indicou-me uma churrasqueira toda catita que fazia comida para fora, na rua perto do quartel dos bombeiros voluntários, onde, por qualquer rua que metêssemos, íamos dar, como se houvesse mais interesse em que fossem as pessoas a lá chegar do que em vê-los equipados a sair de lá para irem a casa delas socorrê-las no caso de estarem em perigo.

Demos com ela facilmente e entrámos. Ao balcão, havia uma senhora gordinha a atender e a esquartejar os frangos que, de vez em quando, virava na grelha e untava de molho para não assarem em demasia de um lado; e outra sentada à caixa, a receber os pagamentos dos clientes. Olhei para o fundo da saleta contígua e não vislumbrei mesa, nem vaga nem ocupada, mas como íamos esfomeados, podíamos desde logo encomendar e comer de pé e entre cada suas garfadas de comida beber um gole de um vinho tinto que vendiam ao copo e, para infelicidade dos meus amigos, eu não podia comprar para mais tarde recordar, porque as únicas garrafas disponíveis eram de litro e, para três, eu não tinha espaço para caberem dentro da mochila.

Findo o almoço, já em direção ao Vale de Santarém, subimos e descemos uma serra e à passagem pela fonte da Joaninha, celebrizada por Almeida Garrett na obra poético-literária “As Viagens na Minha Terra”, tive a sensação de já ali ter estado, mas não podia ter sido há muito tempo porque pareceu-me ter sido ao lado a senhora que ali estava quando chegámos e agora a bilha dela ainda ia a meio.

Mais abaixo, passando um declive, num caminho de terra batida paralelo à linha do comboio regional, um dos meus amigos torceu o pé e, por causa desse incidente, tivemos de abrandar a marcha. Foi o Pedro. Aproveitámos para folgar os músculos, ao mesmo tempo não queríamos que, quem nos visse aos dois adiantados em relação a ele, pensasse que dele fugíamos por qualquer razão mas éramos tão fracos que nem de um homem a coxear conseguíamos ganhar avanço.

Embora mais novo do que eu, esse meu amigo não cuidava da aparência e porque era anafado, ao outro facto ele não associava a circunstância de nunca ter namorado nem de nunca nenhuma mulher lhe ter passado cartão. Por culpa direta dele, falhámos, em mais de uma hora, o nosso objetivo de entrar em Santarém antes do pôr-do-sol e, por conseguinte, em vez de tentarmos ir dormir ao pavilhão de ginástica da escola número um C+S, em cujo balneário podíamos tomar um duche relaxante, fomos à procura de abrigo na velhinha casa paroquial à saída do hospital, onde chagámos tão estafados como se tivéssemos já cumprido os três dias da peregrinação e, em vez de querermos prosseguir viagem na manhã seguinte, estivéssemos a pensar em lá ficar a dormir durante uma semana, sem sequer avaliar se, pelo desconforto da cama, valeria a pena lá passar uma única noite.

Nesse dia, jantámos num restaurante que havia lá perto e deitámo-nos a descansar. O meu amigo que se tinha magoado na perna, a ler as páginas que restavam de um jornal desportivo que apanhou de há quinze dias, enquanto o outro se preocupava em tentar sintonizar os novos postos no pequeníssimo rádio de pilhas que transportava no bolso, o qual ouvia por um auricular sempre sintonizado na mesma estação em onda média, corroborando a opinião dos que céticos radiofónicos que achavam que, em frequência modelada, todos os postos eram iguais e passavam o mesmo género musical.

Quanto ao Carlos era bastante mais magro do que o Pedro e tinha umas sobrancelhas largas, feitas por medida mas para outro par de olhos que não era o seu. Calvo à nascença, não o tinham livrado de ficar precocemente careca, os tratamentos à base de ampolas para fortalecer o cabelo que fez, nem, de ficar eternamente baixo, os suplementos vitamínicos que andou durante a adolescência a tomar diariamente, como se estivessem a surtir algum efeito.

No dia seguinte, com o sol radioso a entrar pelas frestas dos estores do nosso quarto, levantámo-nos mais tarde do que se nos tivessem vindo trazer o pequeno-almoço à cama e dito que podíamos fazer o check-out e largar o quarto lá para o meio-dia. Graças a ter dormido com a perna ligeiramente levantada, o meu amigo que se tinha magoado no pé direito já tinha melhorado e, tendo ambos começado uma guerra de almofadas, já mal os distinguia um do outro e tive de observar mais atentamente antes de repreendê-los pela barulheira, não fosse acusá-lo injustamente de só ter saído vitorioso porque se aproveitou da fragilidade do seu adversário.

Entretanto, uma das vetustas senhoras que zelavam pela limpeza do centro, veio bater-nos à porta e dizer-nos que iam servir um café quentinho. Entrámos devagar na cozinha e vimos que, de uma cafeteira alta semelhante a uma chaminé, do fogão, onde ela estava, em direção ao teto, saía uma coluna de fumo de aroma intenso a que deviam cheirar todos os pratos que nos seus bicos se confecionassem.

Fomos para a rua e à saída da cidade de Santarém e de modo ao momento ficar registado para a posteridade, tirámos uma fotografia de grupo junto à placa de cimento que assinalava a direção para a localidade mais próxima, devendo servir de prova da nossa persistência e valentia para quem de início apostaria em como não chegaríamos tão longe.

Rimámos então à vila de Pernes onde, confidenciou-nos um casal que partilhara a mesa ao pequeno-almoço connosco, só havia um lugar onde se podia comer excelentemente, que era o restaurante panorâmico sem nome situado no primeiro piso do quartel da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários daquele lugar, onde as especialidades gastronómicas podiam ser exclusivamente locais, mas felizmente, em matéria de bebidas, se podia encontrar o que de melhor havia a nível nacional, do Alto Minho ao Algarve, passando pelo branco produzido a partir das castas alentejanas.

Acelerando um pouco o passo e sentindo que a fome não tardava, num ápice alcançámos uma zona da estrada nacional onde se viam outros peregrinos como nós, um troço bem alcatroado, com pouquíssimas curvas e extensíssimas retas que acabavam lá longe, onde, se alguém perdesse as botas, desconfio que voltasse atrás à procura delas, a menos que fossem de cabedal revestidas a ouro e a diamantes.

O que estranhámos desde logo à chegada àquela vila simpática de Pernes, foi o facto de os bombeiros andarem numa azáfama como se as próprias instalações que ocupavam que estivessem a arder. Para meu espanto, vimos que, trajando à civil ou de farda de gala, como se, pelos seus atos de bravura, dali fossem a correr para uma cerimónia no Palácio de Belém a fim de serem condecorados com a Comenda da Liberdade pelo excelentíssimo Presidente da República, apressavam-se a andar de um lado para o outro, como se o fogo estivesse distante de ser considerado extinto. Porém, após uma observação mais atenta, constatámos que afinal o que aparentara ser um motim, resultava de estar a prestes a iniciar-se àquela hora o quinto almoço mensal de convívio levado a cabo, desde janeiro, pelos elementos da Proteção Civil do concelho de Santarém.

Com preponderância para o sexo masculino, havia contudo algumas mulheres. Na maior parte dos rostos femininos, havia uma camada de pó-de-arroz tão grande que daria para disfarçarem as olheiras e os demais sinais de cansaço decorrentes das noites mal dormidas em que ficavam de plantão. Conversavam sobre os mais diversos temas e em uníssono riam, mas não da música de feira que saía altíssimo das colunas de uma aparelhagem foleira, que eu não queria para mim nem em troca de me dizerem que era tão boa que também tocava cd’s de outros artistas, de outro género que eu mais apreciasse.

Saímos dali rapidamente, porque, para cúmulo da nossa falta de sorte, nesse dia o serviço da cozinha estava adstrito ao do almoço-convívio que não tinha horas para acabar, pelo que tivemos de nos contentar, degustando de pé na tasca da esquina, um prego no pão ensopado em gordura e uma sopa de feijão com abóbora que devia ter sido acabada de apanhar porque ainda sabia a terra.

A partir dali, havia uma única estrada que ia dar a Alcanena, a meta de chegada traçada para cortarmos à chegada deste que era o segundo dia de caminhada perseverante a caminho do nosso destino. Contrariamente à anterior, esta era sinuosa e ladeada por mato com sinais recentes de um incêndio em larga escala. Em muitos locais, a paisagem era negra e tanto os pinheiros como os eucaliptos de maior envergadura chamavam a atenção porque tinham o aspeto do carvão quando é metido em pedaços nos sacos que põem à venda nas lojas, enquanto nos outros, por serem de menor dimensão e aparato, as pessoas não reparavam ou achavam que tinham sido plantados posteriormente à tragedia para substituir os congéneres da mesma espécie que tinham ardido.

Quando nos sentámos numa berma da estrada sobre umas pedras para descansar um instante, reparei que estava cansado do tremendo esforço daquela caminhada que de manhã, quando começou, desconhecia onde é que ia acabar. E digo isto sem que estejamos atrasados e possamos, no sítio que escolhemos para dormir, não encontrar vaga quando lá chegarmos daqui a uma hora.

Sem lesões que tornam qualquer viagem irritante, a jornada correu bem e estamos em condições de ganhar tempo para amanhã, se, em vez de ser onde tínhamos pensado ficar, não pararmos e formos dormir adiante de Alcanena.

Estou a pensar que, logo pela manhã, é preciso estarmos fisicamente aptos para enfrentar a ligeira subida à saída da povoação e no pensamento com a serra de Aire em pano de fundo, não nos deixarmos esmorecer pelas dificuldades que alguns obstáculos naturais constituem.