Alexandria

Soava ao canto do rouxinol, ouvi-la pronunciar o meu nome, que ainda hoje distingo com clareza por entre uma multidão que fale noutro idioma. Com o dela, que nalgum devia ter um significado associado ao nome da flor representativa desse país, havia mais possíveis formas de rimar com amor, do que nos versos do mais inspirado soneto de Camões dedicado a D.ª Violante.

Chama-se Alexandra, mas ganhara o hábito de chamar-lhe Alexandria, talvez por acreditar que associada à história dessa grande cidade, estivesse a lenda de um português a ter ido para lá viver para curar um desgosto de amor. No meu caso, teria tido de fazer uma breve escala em Verona, no Veneto a norte de Itália, que foi aonde nos conhecemos, ambos estudantes na mesma faculdade, mas, no meio de tanta gente, não tão perto de nos conhecermos como acontece hoje em dia, mesmo a quem vive longe, através das redes sociais.

Estava no final da minha etapa de seis meses naquele país, no âmbito do intercâmbio do Programa Erasmus. Alexandria, para mim ainda Alexandra, representava aos vinte e três anos, o estereótipo da estudante que há demasiado tempo vivia afastada da família: uma pasta carregada de livros num braço e um passo apressado como se, à medida que se afastava da Faculdade, fizesse apressar o tempo para rapidamente regressar a casa, acelerando o movimento dos ponteiros do relógio.

Senti-me tocado pelo amor, atingido pela centelha da paixão, quando inadvertidamente esbarrámos um no outro. E foi como se, por inação dos ponteiros encravados, pelo efeito da paragem do tempo, horas, minutos e segundos, passei a usá-los como unidade de medida na contagem do tempo de vida perdido até nos termos cruzado.

Ajudei-a a apanhar do chão a mala, mas não contive o espanto de ver que era portuguesa, ainda por cima por ver que, na Língua materna, podia ter-me gritado a tempo de desviar no caminho. Roliça, como eram quase sempre as musas desses pintores, juntava ao útil de podermos conversar para matar as saudades de casa, o agradável de ser fisicamente tal e qual adoraria que tivesse sido a minha primeira namorada por forma a ainda hoje ter saudades dela.

Vê-la agradecer-me no final, inspirava a reflectir de que modo Da Vinci poderia ter sido mais atento à escolha dum modelo que o tivesse posto a pintar um quadro que se tornasse mais famoso do que a Monalisa.

A partir dali, tornámo-nos amigos. Começámos a sair e descobrimos afinidades, que se revelavam como segredos que surgem quando uma porta se abre. Não perdia a oportunidade de deixar que me visse, na esperança de me querer a fazer-lhe companhia e quando saímos juntos, aonde fôssemos empurrava-lhe a porta para entrar na frente e assim revelar a razão de eu vir logo atrás com um ar satisfeito.

Era extraordinariamente simpática e tinha um semblante alegre, que dava antecipadamente a certeza de que, quando abria a boca, se destinava unicamente a dizer as coisas que gostamos de ouvir. Além do ar inteligente próprio de quem nunca se espera que use frases feitas para comentar um assunto. O meu, desde logo foi o de um homem indeciso à procura da ocasião propícia a declarar-lhe que a amava. Fora isso, e por causa da lábia, passava por ser uma espécie de advogado formado na escola da vida.

Falei dela numa carta à família. Naquele tempo, primórdios dos anos 90, quase ficava tão caro como uma passagem aérea para Lisboa, comprar um dos primeiros aparelhos de telemóvel postos à venda em Portugal, praticamente do tamanho de um tijolo.

Passei a descrevê-la como à mulher que me restituiria a confiança no amor, após falhar um namoro de dois anos com a filha do professor de uma das cadeiras, que me chumbou quando soube por que razão, à quarta-feira, nem sempre assentava os pés nas duas aulas.

Tinha tido cinco namoradas, duas delas de uma assentada, mas só à quarta é que percebi a que ponto uma pessoa pode ser feliz, se tiver a sorte de ter uma companheira que valha por duas. Era Deus no céu e ela na Terra, pena foi tê-la perdido para um dos meus amigos italianos com a mania de replicarem a fama de conquistador de Rodolfo Valentino.

Mas de momento, era por Alexandria que estava apaixonado. E se por um lado, gabava-lhe os olhos claros, tão luminosos como, num céu pontilhado de estrelas, aquela que serviu de guia aos Reis Magos na noite de Natal; por outro, rompia o bloqueio que me impedia de falar e confessava-lhes que, no dia de esperá-la no altar, era a tal de quem não me arrependeria de levar uma seca nem que fosse de mais de duas horas.

Descobri umas semanas mais tarde que era lésbica e não apreciava piropos masculinos. Foi por ter reparado, antes de mim, no pormenor duma colega sem soutien, que tornava virtualmente impossível desviar a atenção dos mamilos, para os apontamentos escritos no quadro pelo professor de História da Arquitetura. Sem rodeios, confessou-me que tinham saído juntas em mais de uma ocasião e que, infelizmente, não era tão atrevida como nos levava a crer pelo facto de circular por toda a parte com eles espetados.

Engoli a seco, com a sensação de dormência nas orelhas, ansioso por que se prolongasse até aos tímpanos para com a obstrução dos canais auditivos parar de ouvir tamanha barbaridade.

Nesse dia, despedi-me e regressei a casa a chorar. E durante três dias não vi Alexandria, nem saí de casa a pretexto de uma doença que, pela leitura dos primeiros sintomas, podia estar em estado terminal. Uma doença chamada mal de amor. A mesma a estar na origem da lenda do português que partiu para Alexandria e inspirou à criação do famoso provérbio árabe segundo o qual:

“Há três coisas que custam a deixar para trás: água, árvores verdes e uma cara bonita.”.

FIM