” – Allô? Daqui fala o Papa! “

Atendi em casa uma chamada que não era para mim e dei comigo ao telefone com o Papa Francisco, mas ele devia estar constipado ou por outra razão qualquer ter o nariz entupido, porque não identifiquei logo a voz celestial que tem anunciado ao mundo as transformações recentes ocorridas no seio da Igreja Católica.

Perguntei da parte de quem queria saber se o meu pai estava em casa. A sorrir, identificou-se, primeiro pela função que desempenhava e depois pelo nome próprio, que não percebi muito bem porque era em castelhano.

Em seguida, quis saber por que razão queria falar com o meu pai, que saíra de casa cedo para ir trabalhar. Podia tratar-se de um engano que convinha desde logo esclarecer. O telefone estava no seu nome mas, naquele momento, como estava sozinho sentia-me tão dono daquele objeto como dos brinquedos que guardava no antigo baú do enxoval da minha mãe, de que me apossara sem ela saber, para não ouvi-la queixar-se que os tinha constantemente espalhados no chão do quarto.

Ela e o meu pai, divorciaram-se tinha eu oito anos. Passaram mais quatro e continuam desavindos porque se mantem mais forte aquilo que os separa do que os argumentos que, às vezes, tento impingir-lhes visando reconciliá-los.

Já tinha ouvido falar destes telefonemas, que reforçam a ideia de que o Papa é uma pessoa de caráter excecional, mas nunca supus que um dia o meu pai seria contemplado com um. Comparava a probabilidade de isso acontecer, à da compra de um bilhete inteiro da lotaria de Natal com o primeiro prémio, o que rondava uma expetativa inferior à relação de um para mais de três mil milhões, que era o número de habitantes do planeta que eu calculava que tivessem telefone da rede fixa instalado em casa.

Desconfiando que eu era jovem, o Papa perguntou-me a idade. Percebi que também eu fora traído pelo timbre de voz e, embora no caso dele, se conseguisse resolver o problema mal se curasse da constipação que arranjara, comigo, era necessário esperar mais tempo, até passar da fase juvenil à idade adulta e ter definitivamente uma voz de homem.

Contou-me que começou a praticar desporto mais a sério quando tinha a minha idade e que, antes de entrar no seminário na terra natal, capitaneou durante muitos anos uma equipa de voleibol de praia, numa altura em que e modalidade não era popular porque os argentinos amavam o futebol, ainda sem poderem prever que, dali a uns anos e a jogar em casa, malgrado as críticas dos adversários às arbitragens, estrear-se-iam a conquistar um título mundial de seleções.

Receando maçá-lo ao ponto de não me querer revelar o motivo do telefonema, preferindo esperar que chegasse o meu pai, hesitei entre confessar-lhe que, a não ser para a praia, acompanhava-me sempre uma bola de futebol, e que, para jogar com os meus amigos, entre as duas modalidades optava claramente por aquela em que podia pontapeá-la para perto sem cometer falta ou, de vez em quando para a bancada, sem arriscar ser expulso pelo árbitro por conduta antidesportiva.

Fez menção de me ajudar, passando a falar um Português fluente em que mal se notava o sotaque da sua terra, quando dei a entender que para perceber tudo o que dizia, ele não podia falar tão depressa como se estivesse preocupado com o custo da chamada.

Foi dessa forma que percebi o anúncio da decisão de visitar Portugal quando tivesse uma brecha na agenda, que, se mencionava o nome do meu pai, para mim era como se fosse um livro de honra.

Divagando um pouco pelas suas memórias, confessou-me que conservava intacta a lembrança de um missionário português que conheceu da passagem pelo Colégio da Imaculada de Santa Fé, onde na década de sessenta foi professor de Literatura e de Filosofia. Era um sujeito engraçado que evangelizava levando aos homens as boas-novas da gastronomia portuguesa e quem, numa tarde em que o convidou para ir a sua casa almoçar, lhe deu a conhecer a cremosidade dos pastéis de nata que por essa altura, à exceção do Brasil, não se comiam fora de portas.

Tratava-se de um beirão com reminiscências de Trás-os-Montes, que de exímio pregador da fé a pasteleiro de créditos firmados foi o tempo que demorou a compilar e a editar uma série de receitas que aprendera com a avó, à custa de na infância não ter corrido aos pontapés atrás de uma bola de trapos, o que lhe valeu a alcunha do copinho de leite.

Deu-lhes uma bonita encadernação e fez com elas uma espécie de livro a que deu o nome pomposo de “Manual da Arte de Bem Comer”, destinado a ensinar às donas-de-casa que se debatiam com a falta de tempo para cozinhar, deliciosas e práticas receitas de sobremesas oriundas de Portugal.

Bem … práticas só nas primeiras páginas, porque começava por exemplificar como se confecionavam o leite-creme ou a mousse de chocolate, mas à medida que se avançava e novas iguarias iam aparecendo, aumentava o grau de dificuldade na sua preparação. Nas páginas do meio vinham o Arroz-doce e os Pastéis de Nata, a Torta de Laranja e as Queijadas, o tradicional Pão-de-ló e os Travesseiros de Sintra. Perto do fim, ganhava forma a doçaria conventual, com destaque para o Toucinho-do-céu, as Barrigas-de-freira ou os famosíssimos Papos-de-anjo, que se comiam com tão grande prazer que, além da gula, normalmente suscitavam a inveja de quem não tinha mão para prepará-los ou a ira em quem não tinha tido a sorte de acabar com o último pedaço.

Foi graças a ter provado todas estas iguarias, durante o tempo em que na qualidade de professor lecionou até ter ingressado no Colégio do Salvador em Buenos Aires, sua terra-natal, que o ainda professor, filho de um contabilista e de uma dona-de-casa, aprendeu que em Portugal, terra de brandos costumes, não só se comia bom bacalhau e bebia vinho às refeições, como também não era só de Amália e Eusébio que se falava quando à mesa o tema era fado ou futebol, porque tão bons como esses, esse amigo considerava que havia muitos mais em Portugal. Mas não sei se vem desde essa altura a vontade que o Papa manifestou de conhecer o nosso país ou se ela nasceu de alguém lhe ter afiançado que a quem, aos doces prefere os salgados, também não faltam razões para vir, por dispormos, em praticamente todas as regiões de norte a sul, de uma enorme variedade de enchidos.

Respondi que lamentava não ter irmãos, quando ele me perguntou se algum deles estava em casa ou tinham preferido sair, como se tivessem adivinhado que eu ia receber um telefonar do Vaticano e quisesse ficar sozinho para poder conversar mais à vontade.

Confessou-me que, embora proviesse de uma família numerosa, ele próprio gostaria de ter tido mais irmãos, a quem hoje em dia não faltariam motivos para se orgulharem de si, mesmo que não tivesse ascendido a Papa e, por fim, lá me revelou o que estava por trás deste misterioso telefonema.

Ao que parece, havia uma listagem, onde constava o nome do meu pai, que chegara recentemente ao seu conhecimento e na qual, sendo encabeçada pelo pároco da diocese local, vinham os nomes do atual Presidente da Junta, de outros dois ex-autarcas, de comerciantes, de três dirigentes de uma filarmónica e, entre outros, dos dezassete não-desistentes da última edição da corrida de S. Silvestre que terminou com a vitória de um atleta nigeriano que trabalhava nas obras.

Queria que o meu pai, em nome dos restantes elementos que integravam essa lista, recebesse uma distinção e ao pretender agraciá-lo, na qualidade de Presidente honorário de uma instituição sem fins lucrativos, fá-lo-ia no dia do lançamento do livro onde reunia exemplos de pessoas como ele que contribuíam desinteressadamente para tornar o mundo melhor.

Claro que ao tomar conhecimento da notícia pelas vias oficiais, o meu pai ficou tão feliz como eu, sobretudo porque podia levar-me para assistir a uma cerimónia que tinha honras de transmissão televisiva.

Nesse dia o telefone não tornou a tocar. Nem eu o atenderia, receando que fosse o meu pai e, contando-lhe o sucedido, ele me pudesse repreender pensando que esta história resultava da minha imaginação e que, afinal, o que o Papa queria, como representante de Deus na Terra, era que o seu nome não fosse invocado em vão.